Eu moro num quartel

 Eu fiquei impressionada em como é silencioso aqui. Continuo impressionada. Escuto algumas gotas de neve derretendo - parece uma chuva calma -, às vezes um vizinho chegando ou saindo e lá no fundo: o aviãozinho. Tenho percebido que são dois vôos ao dia. Parece um teco-teco, desses pequeninos, que sai para dar uma volta pelas redondezas. Os desavisados visitantes - se não fosse a pandemia - nem perceberiam que estou enfiada em uma base aérea da marinha (parte desativada), do lado de um aeroporto executivo.

Réplica de um avião que pertencia a essa base e se acidentou em 22 de setembro de 1978. Ele fazia patrulhamento de submarinos na guerra fria.

Quando encontramos o apartamento aqui, a gente estava no limite da paciência de viver dentro de um quarto. Dividimos a casa com mais 7 estudantes por 9 meses. Nem sempre os mesmos. Os outros moradores vinham e voltavam e hoje mantemos contato somente com Bo. Bo era tratado por nós como nosso filho até dávamos conselhos para a vida. Passamos o ano novo (2020) entre nós: Bo, marido, Pandora e eu. Toda vez que alguém estava cozinhando tínhamos uma reunião familiar, contando sobre o dia e trocando histórias. Bo foi com a gente para Bar Harbor e ajudou a trazer umas artes para Brunswick. Mas daí ele se foi e nós sentimos saudades. A ligação foi forte para ele também que adotou um cão e o chamou de Noble, em homenagem à rua na qual dividimos a casa. De vez em quando Bo liga e pergunta algumas expressões em português para ensinar para Noble. Ele disse que quer que Noble se comunique bem com a Pandora quando se encontrarem.

Depois de Bo foram e vieram vários estudantes. Uns melhores e mais educados que outros. Uns mais limpos e organizados que outros. Mas para nós, mais velhos, a coisa estava ficando meio complicada. Tínhamos um plano de ficar até quatro meses ali enquanto encontrávamos a nossa casa para comprar. A pandemia veio, a compra da casa não rolou e acabamos passando boa parte da pandemia naquele quarto no segundo andar da 5 Noble St. Aqui você pode ler mais sobre isso. Nossas coisas todas estavam enfiadas em um armazém e a gente só usava o que era mais necessário.

Na cozinha da 5 Noble dividíamos uma parte pequena da segunda geladeira, duas prateleiras do armário e duas gavetas. O exercício de colocar toda a nossa cozinha de Bar Harbor - que tinha em torno de quatro metros quadrados com balcões em praticamente três paredes e uma ilha no meio (espaço suficiente para fazer muito nhoque)  - nesses espaços foi hercúleo. Passamos a comprar somente o necessário e a não estocar nada. De qualquer forma o mercado era bem em frente. Então durante a pandemia, enquanto as pessoas se matavam pelos rolos de papel higiênico, a gente saía do mercado com duas sacolinhas. E estava tudo bem.

Mas convivência é algo bem complicado. A gente exercitou diversas habilidades e virtudes de todos os jeitos nesses 9 meses. Desde as loucuras por limpeza até manias de organização foram deixadas de lado. Nos desprendemos de todas, mas a privacidade, ou a falta dela, era algo que incomodava. Então, como não haveria possibilidade de comprar uma casa tão cedo, fomos atrás de algo barato, em que coubessem a gente e nossas coisas. Ou parte delas.

Os alugueis de casas de família com dois e três quartos e um mini quintal estavam nas alturas então demos de cara com o Pegasus e o Neptuno Landing. São complexos de sobradinhos (chamam de apartamento) de solteiros alugados agora para família: 190, para ser mais exata, o que acolhia 400 soldados em tempos de ação militar por aqui. Eram parte do quartel da base aérea e serviam para acolher dois soldados cada um. Cada apartamento tem, uma micro cozinha acoplada com uma mesa de comer, um banheiro e, na parte de cima, dois quartos. Não têm sala de estar e, para nossos padrões, era bem pequeno, geminado com vizinhos dos dois lados. A ranzinzice do marido veio à tona: o carro fica longe, não tem lugar dedicado para estacionar, eles não cuidam bem das áreas comuns, tem lixo e objetos por vários lugares, a mulher corretora não me inspira confiança, tem vizinhos acumuladores, não dá para ir andando para o estúdio, bla bla bla. Já de minha parte, só de saber que a louça ia estar lavada no outro dia de manhã, do jeito que deixei, já valia a mudança. O mais importante: aceitavam a Pandora, coisa rara de se encontrar em qualquer outro lugar que encontramos.

Vimos e decidimos mudar. Em dias diferentes, porque as agendas de trabalho dos dois não permitiam tirarmos um dia para fazermos a mudança. Não, nem sábado ou domingo. Então da metade do mês de setembro até o final ficamos mudando de pouco, trazendo coisas do quarto na 5 Noble e caixas. É claro que algumas coisas ficaram no storage (fica complicado chamar de armazém) pq sabíamos que teríamos que desapegar. A pesada e enorme escrivaninha da avó foi para o espaço do sogro, o segundo futon, que compramos para visitas virem dormir teve que ser vendido, a geladeira, novinha, vendida, o baú antigo que comprei da prima mandei para uma amiga e alguns outros móveis foram para o estúdio de arte. É downsizing que se diz em inglês. Em português estávamos fazendo uma limpa obrigatória. Ainda assim, entupimos os dois cômodos de cima do apartamentinho com caixas de livros e de roupas. 

A cozinha, menor que a cozinha do barco do sogro (galley segundo ele), também comportava bem menos coisas do que tínhamos. Então começou um processo de liberação. Doamos, jogamos fora, vendemos. Quase cinco meses depois, nenhum de nós dois sentiu falta de coisa alguma. E posso dizer que há ainda coisas que podemos passar para frente sem problemas. 

A gente acha que precisa de um monte de coisas. Só acha. 

A primeira noite aqui nos barracks (quartel em inglês) foi surpreendentemente silenciosa. E assim continua. Ouvimos duas discussões que acabaram em dois minutos. 

Visão de várias manhãs na ex-base naval


Às vezes o pessoal estaciona o carro onde não pode como vaga para deficiente ou em cima da grama. E não há separação de lixo o que nos obriga a levar nosso lixo reciclável no latão do estúdio do marido. Mas eu estava preparada para coisa muito pior. O que é perspectiva, não é?

Tem vezes que paro e fico pensando como era a vida dos soldados, a rotina entre essas paredes. Há uma energia de ordem e organização pairando no ar mesmo tendo um monte de família de civis e somente um ou outro fardado chegando de vez em quando. 

Intrigante mesmo foi notar um olho mágico em cada porta dos quartos (para nós um dos quartos virou a sala). Virou motivo de conversas com o marido e com amigas. Porque você, dentro do seu quarto, que fica dentro do seu mini-apartamento dividido com outro soldado, precisaria olhar para quem estava do lado de fora da porta do seu quarto? É de se entender que o indivíduo que vivia no outro quarto era seu colega de profissão, equipe, trabalho. Minhas elucubrações correram soltas por muito tempo. Marido tentava explicar que poderia ser para saber se estão sendo invadidos. 

- mas gente, se os invasores conseguiram chegar no quarto do soldado, tudo já foi tomado, já que é tão complicado e intricado entrar aqui e achar as casas. 

Eacabei desenvolvendo uma outra opinião depois de saber de abusos frequentes que aconteciam e acontecem no exército, marinha e aeronáutica aqui e em outros lugares.

- E se esse olho mágico era para proteger o soldado dos próprios colegas?

Continuo a me perguntar. Me pergunto se tomavam café da manhã ou jantavam juntos na mini cozinha de cada apartamento ou se era mais para lanches rápido e todo dia usavam um refeitório.

Os sinais de um tempo em que esses espaços abrigavam toda a preparação para guerra são muito presentes. Na floresta aqui do lado onde caminho com a cã tem uns canos de metal que acabam vindo do chão e se confundem com as árvores. Outro dia fui pegar algo no chão e havia um pedaço de cabo elétrico que saía do troco de uma árvore. Andamos também por espaços onde os depósitos de munição se avolumam. Marido contou mais de 100. São bunkers cobertos de grama que do céu fica bem díficil de identificar. Essas construções só estimulam a minha imaginação. Fico criando usos alternativos para todo esse investimento que agora não se presta ao que foi feito. Há ainda uma capela naval, um mini-museu, barricadas e estoques de água em cada quadra.

Assim, não posso negar que morar aqui me faz me sentir quase todo dia no filme do Top Gun, principalmente quando escuto o teco-teco levantando vôo diariamente. 

Teco-teco no céu de brigadeiro

Mas a minha parte favorita de morar aqui é o fantástico por do sol que posso desfrutar toda vez que volto para casa. Não foram poucas as vezes em que parei o carro pertinho do aeroporto só para ver o astro-rei se indo devagarzinho.

pôr-do-sol do aeroporto


Eu não reclamo. Às vezes eu fique imaginando o Pegasus me dando uma carona para o outro lado desse charco chamado Atlântico. E Netuno dando um adeus ali de baixo, do meio daquela água toda. 

Olha, vai que morar aqui é um sinal, não é? 

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