Um avesso tão avesso que pode muito bem ser o certo


Como se já não bastassem meus dias estarem todos do avesso, numa fase em que os amigos aqui chegaram a exclamar que estávamos realmente no “edge” (na borda, no limite, na margem, na beirada), a pandemia se instaura.

Desde dezembro estamos enfrentando a consequência das nossas escolhas. Em vez de manter uma vida previsível, com a segurança da mesmice e da rotina, do mesmo trabalho para a vida toda, dos mesmos problemas, mesma casa, mesmos vizinhos, há algum tempo marido e eu decidimos fazer diferente, se lançar no desconhecido. No que era rotina para os outros, mas para nós era novo aprendizado. Até o último dezembro, eu estava levando muito bem os novos desafios que me levaram de professora universitária a housekeeper de Bed & Breakfast e depois a... nada. Isso, nada.

Quando o B&B em Bar Harbor foi vendido em abril eu tinha três planos claros na minha cabeça. O último deles foi o que se concretizou. O que significava: morar onde der, fazer o que se tem disponível para fazer e viver do que a gente conseguir.

E foi assim que alugamos um quarto (sim, um quarto) para nós dois e a cã e eu fui postulando para todo tipo de trabalho nas três cidadezinhas dessa região que viemos morar. Serviço ao consumidor, vendedora de loja de decoração, de loja de equipamento, estagiária de comunicação em loja de aventura, recepcionista de dentista, arquivadora de hospital, auxiliar de pesquisa na biblioteca pública, e front desk em hotel, enfim, uma variedade de posições. Fui, inclusive, em uma feira do setor industrial e em uma empresa de staffing... Plantar, né? Era isso que eu pensava.

Marido já tinha alugado um espaço para as artes mas como isso ainda não bota a mesa em casa, ele foi botar a mesa em restaurantes para poder botar a mesa em casa, se é que vocês me entendem. O quarto estava alugado até o final de abril o que nos dava um tempo para juntar todas as moedas e economias com o que já tinhamos guardado para ver se poderíamos dar entrada numa casa.

Mas aí começam as complicações. Vem financiamento, e estrangeira não tem crédito, e o trabalho tem que ser fixo na mesma área em que estávamos antes e bla bla bla... No fundo, ser outsider do sistema nem é tão romântico como todo mundo imagina. Porque o sistema te esmaga se você não o respeita. Ele te dobra e te força a servi-lo de um jeito ou de outro.
Quem está na roda nem percebe mesmo. Como aqueles ratinhos que ficam girando, girando, girando e correndo e girando. Mas quem fica saindo ou entrando na roda, está sempre levando tombo. Era assim que eu nos via. Levando os tombos de sair e ter que entrar...

Consegui um trabalho enfim, como “paralegal” temporária. Um estágio chique benhê. Ia trabalhar num escritório de advogados e aprender uma montuera de coisas relacionadas aos jargões da área. Era um temporário-que-pudesse-contratar. Sempre falam isso, né? Falo mais dessa experiência em outro texto. Fiquei animadinha. O dinheiro não era lá essas coisas. Mas fui porque essa história de ficar recebendo só “não” na cara não dá muito certo no longo prazo. Adaptei no novo trabalho, nada muito empolgante. Na verdade, muuuito chato mesmo. Mas enfim, pela primeira vez na vida eu estava trabalhando por dinheiro. Só. Por. Dinheiro. E caiu uma ficha imensa quando percebi o quanto privilegiada fui a minha vida toda. Meu, pela primeira vez na vida eu contava os minutos para o dia acabar. E a coisa nem era tão horrível assim. Chegava em casa e falava pro marido:

- Meu Deus! E pensar que a maioria da população no mundo todo trabalha por dinheiro. Só por dinheiro.

Dinheiro, essa força motriz para fazer 80% do mundo infeliz... (vi num vídeo de um psicólogo que foi ao Pânico dar entrevista, essa cifra. Ele disse que a fonte era a Deloit).
Meu queixo caiu. Que menina mais mimada fui a vida toda. Todos, to-dos os trabalhos que fiz na minha vida todinha tinham uma tônica de objetivo final que fazia sentido para mim. Isso desde quando eu era adolescente e ajudava na loja/papelaria dos meus padrinhos. Tinha nexo o que eu fazia! Agora eu não via mais isso.

E antes de virar uma pessoa infinitamente triste, pensei no que 80% da população mundial deve pensar quando vai infeliz trabalhar: é por uma boa causa particular! Afinal eu preciso comprar a casa. Então não é só dinheiro, é uma casa. Pronto, senti um alívio. Alivinho, mas aliviou um pouco.

Paralelo ao trabalho, a gente estava tentando o financiamento e procurando casas que estavam dentro do nosso orçamento. Em 6 cidadezinhas diferentes. Estava, muito a contragosto, cedendo à necessidade que se avizinhava de ter que comprar o segundo carro. Coisa comum aqui, mas a qual resisti bravamente desde que cheguei aqui. Pensava:
- bem, se tivermos uma casa que está a 40 minutos ou 1 hora dos nossos trabalhos, não tem a possibilidade de um buscar o outro, levar... Mas enfim, tudo pela casa.

O agravante piorado veio com o processo de compra aqui. É leilão. Então a pessoa mostra a casa e põe um preço. Quem está a fim vai lá ver, e faz uma proposta maior que o preço. O vendedor, como princesa casadoira, escolhe o melhor príncipe ou proposta. Foi desse jeito que depois de vermos mais de uma 20 casas, gostarmos de umas 6, fazermos proposta para umas 3, perdemos todas. Todas.

Meu filho, por sua parte, estava viajando a América do Sul com a nora e neta. Eu acompanhando via redes sociais, whatsapp e dando graças por essa tecnologia disponível cada vez que podia ver a neta no celular... Era um jeito de ter eles por perto mesmo que estivessem longe, nessa aventura de desbravar.

Foi bem nesse momento da minha vida que a pandemia chegou. Marido perdeu o trabalho por dois meses porque tudo fechou, voltou para o seguro-desemprego (não, ninguém está morrendo de fome por aqui, não dá para reclamar). Eu carreguei meu computador do escritório de advogados para casa e continuei com o meu trabalho temporário-que-talvez pudesse-contratar,  com um horário diferenciado para revezar o sistema remoto com os outros colegas.

Continuamos na casa partilhada onde só tínhamos um quarto para chamar de nosso. Os roommates decidiram fazer as quarentenas deles em seus estados de origem, viajaram e acabamos ficando em uma casa enorme com quartos trancados só nós três: marido, cã e eu.
A mulher do financiamento disse que era para continuarmos a busca da casa porque como ninguém sabia direito como as coisas estavam era melhor ir seguindo... E seguimos, sendo rejeitados. Pusemos luvas, máscara para ver as casas. Nada. Tempos depois a mulher diz que era bom pensarmos bem porque teríamos que ter um emprego formal, decente, regular, quando fechássemos o negócio da casa. Se fechassemos. O estresse em casa aumentou com a chegada da data que deveríamos sair daqui. Pelo jeito a solução era mesmo pagar uma fortuna em aluguel e desistir de dar um fim honroso para as economias resultantes das sefodências da última temporada de trabalho no turismo.

No outro dia recebi o email de uma posição para a qual postulei em janeiro: carteira. Isso, de carregar e entregar carta. Nada muito certo, porque o emprego é federal, tem que preencher mil documento, fazer o background check, teste de drogas e o escambau, mas fui entregando as coisas. Sem previsão de contratação, sem informação concreta mesmo.

O filho entrando do Chile na Bolívia acabou sitiado em um hotel a 18 horas da fronteira com o Brasil, dentro de um hotel até bem agradável com a nenê e nora sem previsão alguma de liberação porque Bolívia fechou as fronteiras e proibiu qualquer deslocamento nas estradas. Ninguém sai, ninguém entra. Aí o governo francês decide mandar um avião para expatriar outros turistas e nora e neta resolveram aproveitar. Decisão nada fácil porque estava indo para onde o pico do vírus estava acontecendo... Filho ficou para trás, sozinho, para dirigir até o Brasil com o camper. Meu coração ficou dividido em pedaços que viajaram com eles para cada canto.

Então assim, o vírus pode ter virado de cabeça para baixo a vida de muita gente. Para a minha ele só chacoalhou um pouco mais o que já estava tudo virado, tudo no ar, tudo espalhado, tudo sem resposta. Então, quando dizem por aí que isso é uma maratona e não uma corrida de velocidade, eu sinto que já estou pronta para o Iron Man (Sâo Silvestres virou fichinha).

Porque se tem gente choramingando que tem que fazer quarentena no conforto de sua própria casa, com a família que escolheu para viver junto, eu que estou no meio dessa zona toda, fico pensando em quem tem dois cômodos e um marido violento. Então eu me fortaleço e agradeço.

 O vírus pode ter trazido um baita chacoalho na vida do mundo inteirinho, mas deve ter doído mais para quem está super confortável nesse sistema. Para quem fica entrando e saindo da roda aos tombos, ou aos que estão pendurados pelo lado de fora da roda há tanto tempo, é só mais do mesmo com requintes de crueldade.

E é aí que mora a esperança. No descambamento radical dessa roda. Porque se finalmente galera que achava que esse sistema em que vivemos (e em sistema incluo tudo: político, ecônomico, cultural, social) entendeu que não é algo que funciona, é possível que vejamos mudanças decentes. Em tudo. No fundo sou uma otimista inveterada. No meio dessa bagunça toda eu fico aqui imaginando que vamos repensar nosso jeito de nos relacionar em família, vamos pensar o jeito como o dinheiro se move, vamos repensar onde passamos/gastamos a maior parte do tempo, vamos entender o que é tão precioso que estamos deixando para trás.

De quem está na beirinha do abismo há um bom tempo, digo: a vista é linda. Mas a gente tem que dar o tempo para admirar e finalmente entender que temos asas. Que essa beirada pode ser só uma alavanca para uma vida melhor.

Comentários

  1. O que dizer dessa pessoa que tanto admiro? Que mesmo de longe me ensina tanto sobre a vida? Já falei que te amo hoje? Vai dar tudo certo! Suas asas te levarão para longe! <3

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    1. E eu amo vc! Obrigada por me segurar a mão, amada! Beijo imenso.

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  2. E é assim que muitas famílias vivem,muitos ,a vida toda.Sempre tem uma luz no final do túnel.Você é corajosa e vai merecer o melhor caminho.O importante é que voce nunca teve medo de trabalhar e tudo que estudamos durante a vida é para enriquecermos nossa vida.Diploma não significa trabalho,mas;coragem e força de vontade sim.Sucesso minha filha.Tudo vai dar certo.

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    1. Dona Neuza! Vc escrevendo comentário em blog! Que beleza, hein? Obrigada pela fé, sempre. Amote!

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