Sempre amei os trens. O único meio de transporte no qual eu não enjôo.
Esse texto começou
a ser escrito em 6 de abril de 2023, no final do primeiro ano letivo em que
ensinei na Boston University. Não lembro de ter tido um ano mais desafiador em
toda a minha vida. Não consegui escrever nesse tempo. Agora sai um
texto-catarse.
Eu estava no trem em
Boston para ir de Boston-Massachussets para Brunswick-Maine. Cansada. O corpo
todo doía e eu não conseguia parar de pensar num meme que tinha visto esses
dias no perfil de uma ex-aluna querida. O meme mostrava uma menina acordando
aos 20 anos e refletindo sobre a ressaca que a afligia depois de 7 coquetéis.
Um outro quadro apontava a mesma menina acordando de ressaca aos 30 depois de 0
coquetéis. Eu não pude deixar de pensar que tipo de meme seria feito se continuássemos
aos 40 e aos 50. Cheguei aos 49 ontem e agora é só uma questão de tempo (muito
pouco tempo) para eu completar metade de um século nessa terra. Que loucura. É
bem possível que eu, agora, tenha vivido mais do que ainda vou viver.
Eram esses pensamentos
que populavam minha mente enquanto mais gente ia entrando no trem, se
acomodando nos espaços vagos, pondo malas acima dos assentos, tirando casacos.
Era a primeira vez que eu pegava um trem no horário de saída do trabalho. Foram
várias viagens nesses últimos meses em horários alternativos numa tentativa de
fugir das multidões. Fiquei pensando o quanto fui privilegiada de encontrar um
lugar para poder morar em Boston neste último quase ano, que me permitia caminhar
algumas quadras para as aulas ou para o meu escritório na universidade. Eu
tenho um escritório só meu, com meus livros. Outro imenso privilégio, se
compararmos com as condições brasileiras. Eu chamo carinhosamente de meu closet
porque é um dos menores do prédio. Eu tenho uma mesa encostada na parede e na
minha frente um artigo de luxo: uma janela. Eu sei o quanto é valiosa uma
janela dentro de uma corporação gigante como uma universidade com mais de 55
mil estudantes. Meu “closet” tem janela com luz natural por onde eu vejo os prédios
feitos de brown stone (um tijolo mais escuro) contrastarem com o céu que muitas
vezes é de um azul retumbante (essa cor existe!), mesmo não sendo um céu “brasileiro”.
Por ser pequeno, foi bem fácil personalizar esse meu escritório em dois dias. Aloquei
uma série de obras do marido que refletem sobre comunicação em uma parede, uns 50
livros de comunicação em três línguas diferentes nas duas prateleiras,
separadas em duas paredes diferentes, duas aquarelas do marido que na verdade
eu vejo mais que todo mundo porque elas ficam na parede da saída. Mas o que
define que esse canto é meu, é uma tela desenhada pelo meu antigo “esposo” do
trabalho e amigo eterno e que foi pintada pelo marido: uma tela em que eu estou
voando em meio a tudo que me define, me atrai, me realiza. Eu tenho a impressão
de que algo está faltando naquela tela e é bem possível que seja uma representação
da contínua busca na minha vida, do que ainda vou desenvolver, fazer, realizar.
Vista da janela do meu escritório. Ali onde as Brown Stones contrastam com o azul retumbante |
Um plano que enterti
desde o início do semestre foi o de colocar alguns vasos de plantas nessa
janela. Mas como eu não sabia quanto tempo eu ia passar ali e não queria ser
responsável pela morte de nenhuma planta, achei melhor esperar um pouco. E
nessa espera vieram dois semestres letivos que, como aqueles caldos
subsequentes que a gente toma de uma série de ondas do mar, me reviraram de
cabeça para baixo, de um lado por outro, de trás pra frente, de frente para trás.
É, nao deu ainda para colocar as plantas na janela. Nesses dois semestres eu me
afetuei a esse canto: passei da noção de não merecer aquele espaço a começar a
entender que podia e tinha o direito de usufruir de algo que conquistei. Minhas
coisas cabem bem ali, tenho uma chaleira elétrica para fazer chá, umas comidas
na gaveta para não colocar a vida de ninguém em perigo no caso de eu sentir
fome e uma cadeira no canto, para os alunos que vem para conversar.
Ainda sentada no trem,
inerte com o cansaço e observando os movimentos dos outros passageiros, lembrei
do primeiro aluno que sentou ali no ano passado. Eu não tinha ideia do que
dizer para ele. Nao tinha ideia de quem eu era nessa estrutura, do que eu
deveria saber ou aconselhar. Tudo era novo: o sistema, o aluno, o escritório, a
cidade, a língua, os colegas de trabalho, o mercado, a maneira de ver a educação
superior. E eu não tinha ideia de onde eu me encaixava ali, quem eu era ou quem
eu deveria ser. Descobrir isso – eu ainda estou no caminho – doeu mais que
qualquer outro processo que eu me lembre em toda a minha vida. Talvez porque
depois de anos de terapia e diversas experiências você passa por esses momentos
de crise com muita consciência e não admite não saber o que fazer. Ainda estou
no movimento de aceitação.
Uma mocinha decidiu
sentar do meu lado. Como boa americana – ou uma imigrante muito bem adaptada –
ela não olhou na minha cara. Em mais de 25 viagens como esta que fiz nesse
tempo devo ter tido colegas de poltrona umas quatro vezes. Território, espaço
pessoal (que pode ser na mente também) é algo sagrado por aqui. Você não
interrompe a solidão de ninguém nem para cumprimentar. Só em extrema
necessidade. Ela se ajustou rapidinho, pondo fones de ouvido (ótima proteção
para evitar falar com outrem) tirou o computador e começou a trabalhar. Eu me
mantive olhando para fora, vendo a movimentação na estação, gente correndo para
entrar em outros trens e nesse em que eu estava. Eu tinha coisas para fazer,
muitas. Mas havia algo que estava me pedindo para só estar presente, só estar,
ser. Era hora de começar a recuperação da exaustão.
Não imaginava que essa vista seria minha rotina |
Continuei refletindo
sobre a loucura emocional que foram esses últimos meses. Eu finalmente tinha
conseguido ser contratada no trabalho que eu busquei por mais de seis anos.
Depois de ter feito um pouco de tudo, mudado de cidade, aplicado para centenas
de posições de ensino em diversas partes do país, de ter me irritado com os
mandos e desmandos do universo que não fazia especificamente o que eu queria,
quando eu realmente aceitei a minha condição de vendedora de livros em uma loja
no Maine (que era confortável, segura, previsível), a oportunidade que eu não
esperava mais, chegou. Eu passei uns quatro a seis meses duvidando do que me
tinha acontecido. Mudança de cidade, o desafio de preparar disciplinas do zero,
sem conhecer os autores desta cultura, os livros mais usados, o sistema, os
alunos, os colegas, as políticas, as dinâmicas. Foram sete dias de trabalho por
semana, durante o semestre todo, tentando dar conta das leituras e preparações
numa língua que não domino, viajando semana sim semana não para outro estado
onde marido e cã ficaram. A sensação de não fazer parte, de ser pequena perto
daquilo tudo, de não ser capaz, bateu muito forte. Foram noites e noites
acordando de madrugada num solavanco, com o coração na garganta, tendo a
certeza que ia dar tudo errado, que eu não ia conseguir explicar, que iam
descobrir logo a farsa que eu era. A amiga veterana gritava comigo:
- você consegue
entender que você foi escolhida pelo menos entre mais de 150 pessoas? Que este
é o seu lugar?
Um dos exercícios em sala. |
A outra amiga esotérica
chacoalhava minha falta de fé: - não é hora de reclamar, é hora de resolver.
Se você esta aí, é porque aí é o seu lugar. Mas a ansiedade de não saber os
meandros, a ansiedade de achar que nada que fazia estava bom, foi me dominando.
Na primeira aula que dei, eu voltei para o meu closet/escritório me sentindo um
lixo, toda errada, achando que a minha aula tinha sido um desastre. Tive um
ataque de choro de soluçar, liguei para o marido e disse que não queria mais
estar ali. Que tudo tinha sido um erro, que eu não servia para lecionar mais,
que eu tinha me enganado. Ele, que nunca tinha me visto daquele jeito, tentou
ser colo sem apontar solução. Eu determinei: vou terminar esse semestre pra não
deixar ninguém na mão e daí volto para a loja de livros. E assim foi o semestre
todo: toda semana eu tensa, preparando aulas como uma louca, lendo, escrevendo,
procurando material complementar. E os colegas professores sendo muito acolhedores,
prestativos (mais do que eu imaginava), oferecendo dicas, sugestões de livros e
de dinâmicas de aulas. As chefes pro-reitoras muito carinhosas respondendo às
questões mais básicas que eu fazia e simpatizando com a dificuldade que era
preparar tudo. Os alunos todos, 90% asiáticos em meio aos americanos, super
respeitosos, interessados. Eu não tinha do que reclamar mas ainda assim estava
me sentindo pior do que horrível. Eu não conseguia descansar de verdade, não
conseguia passear ou pensar em outra coisa que não fosse preparar aula. Para
piorar, bem no início do semestre me disseram que eu deveria ensinar no segundo
semestre disciplinas que eram todas novas (novos livros, alunos de graduação em
vez de pós, novos assuntos) e que eu deveria incluir nelas um software de análise
de dados quantitativos que eu nunca tinha usado nas minhas pesquisas. A
ansiedade alcançou níveis espaciais com ataques de choro diários e alguns
esparsos ataques de pânico. Mesmo assim eu consegui terminar o primeiro
semestre sendo avaliada positivamente a partir de observação em sala realizada pelo
meu coordenador de curso e pela co-coordenadora. Em uma das turmas, fizemos uma
mini-confraternização e parecia que os alunos estavam felizes. Mas já tinham me
falado que eles normalmente tratam a gente super bem e depois falam horrores
nas avaliações. Em outra sala os alunos pediram para me dar um abraço, o que
significa infringir as orientações expressas que recebi sobre não tocar os
alunos em hipótese alguma. Eu os abracei. Aos poucos, aquela eu latina, rebelde
e espontânea estava saindo do casulo onde eu a tinha enfiado. Mas eu não sabia
se isso era bom ou não. No final do semestre a minha mentora, uma das
professoras mais antigas, me convidou para, junto com outras professoras,
assistir a um musical. Ela sempre me incluiu na socialização e sempre fui muito
grata, apesar de ainda carregar a impressão que eu não pertencia àquele grupo.
A amiga da amiga, outra brasileira veterana também da academia, me ligava, me
convidava para a casa dela, me apoiava. A rede de suporte era incrível, mas eu
continuava a duvidar de mim.
Trilhos que levavam ao outro trem |
O trem começou a dar
sinais de que ia sair. Eu me mantive imóvel olhando pela janela. Acompanhando o
ir e vir das pessoas em outros trens, em outras portas e plataformas. Nesse
momento um rapaz correu pela plataforma ao lado do trem, sem mala ou mochila
alguma. Ele carregava somente um buquê de flores. Prestei atenção, me ajeitei
na cadeira. Acompanhei o movimento do moço pela janela até onde consegui. Ele
correu para a frente do trem e o perdi de vista. Fiquei imaginando se ele tinha
entrado no meu trem.
O semestre finalizou e
eu me senti em pedaços. Vieram as férias de inverno e fui visitar filho e neta
para ver se recuperava um pouco da energia perdida. E a frase que determina que
os problemas sempre caminham com a gente não podia ser mais verdadeira. Eu
estava com os meus amores, num lugar lindíssimo, sendo muito bem tratada mas
vulnerável como nunca estive, carregando ainda uma ansiedade desmedida e um
aperto no peito, como se eu tivesse o pior futuro pela frente. A avaliação dos
alunos chegou antes do esperado e a minha síndrome da farsante explicou:
- mandaram antes
porque você foi horrível e querem te dar tempo de se preparar melhor.
Na primeira leitura eu me apeguei as avaliações ruins e fiquei muito mal. Depois de uns três dias digerindo, vi que na verdade eram somente uns gatos pingados que foram muito vocais, mas a maioria realmente gostou. No fundo comecei a repetir para mim o que eu entendo como o movimento comum do ser humano. Quando a gente gosta muito de algo, nem sempre a gente reporta. Mas quando não gosta, a gente tira energia das vísceras para vocalizar o quanto insatisfeitos estamos. Então, no final das contas as minhas avaliações nem foram tão ruins assim. De qualquer forma o aperto do coração continuava pelo que me esperava a frente. Eu não tinha controle, muito menos conhecimento de alguns dos tópicos que precisava ensinar e o não saber, não ter preparado, estava me fazendo muito mal. A minha neta, que detém a sabedoria das crianças pequenas percebeu de longe que eu não estava bem e acabou me evitando enquanto eu a visitava. Eu sabia que não estava sendo boa companhia. Nem para ela e muito menos para mim. E ficar sem os abraços apertados da pequena me manchucou muito. A culpa não era dela. Eu precisava ser uma pessoa melhor, eu precisava trabalhar melhor minha energia. Eu precisava, mas não consegui.
No lugar de abraços e chamengos ela deixou eu lembrar como se fazia tranças |
A ansiedade continuou a me assombrar por meses. Principalmente porque as aulas que tinham os assuntos os quais eu não dominava seriam no final do semestre. Para adicionar a toda pressão que eu mesma estava me colocando, fiquei sabendo que meu contrato era de um ano e que só me diriam se seria renovado ao redor de fevereiro. Para piorar tudo, uma das chefes (soldado raso) começou um processo de perseguição e pressão. Coisa que eu não soube lidar muito bem, já que estava bem fora do que poderia ser minha zona de equilíbrio. Enfim, eu estava tomando um coquetel de adrenalina diário e não tenho ideia de como estava viva naquele trem.
Caminhadas nesse cenário não me deixavam enlouquecer de vez |
É claro que assim que as crises de choro começaram eu fui atrás de ajuda. Meditação, terapia, floral, dieta ayurveda, fé e muitas amigas, gente que foi colo. Não sei o que seria de mim se não fosse essa rede que de algum jeito construí ao meu redor. Eu só não sabia que eu também tinha construído os monstros que me assombravam. Desde a dúvida contínua sobre se eu estava fazendo o certo, se os alunos estavam me entendendo, se eu estava sendo competente, se eu conseguiria aprender o que deveria ensinar. Passei a semana de intervalo de primavera fazendo cursos e tendo aulas particulares sobre o conteúdo que eu deveria ensinar em duas aulas no futuro. Eu estava em pedaços. Não acreditando em mim, só esperando alguém vir me dizer que tentaram me manter na posição mas que eu era muito ruim, não ia dar. Ao contrário, recebi a notícia da renovação do meu contrato por cinco anos. E a única coisa que eu poderia pensar era: eles estão sem opções de outros professores. Só pode ter sido essa a razão dessa renovação...
Minha atenção voltou-se
para o trem. Depois de tudo eu estava ali. Depois de ter sobrevivido às aulas
que foram imensas fontes de ansiedade. Eu consegui aprender e ensinar.
Sobrevivi e estava no trem indo para casa, olhando para o vazio da plataforma.
O trem começou a se movimentar e, de repente, eu avistei o moço do buquê de
flores fora do trem, voltando pela plataforma, sorrindo. Não precisei ver se
havia alguém caminhando na direção dele ou o esperando. O olhar dele dizia
tudo. Alguém o esperava, fora do trem. Alguém não tinha embarcado e o esperou. O
alguém das flores.
Pensei nas férias fantásticas que me esperavam. Em quase sete anos morando fora, ia ser a primeira vez que tiraria férias pagas. E eu iria encontrar com as pessoas que amo em duas grandes viagens. Finalmente, aos poucos eu poderia começar a respirar melhor e a recobrar minha energia e meu centro de equilíbrio. Prometi a mim mesma que iria resolver esse processo de não acreditar em mim de uma vez por todas.
E comprar flores.
Eu merecia um buquê de flores.
MARAVILHOSO!!! O texto, os aprendizados, e por que não dizer, a vida, não é?!
ResponderExcluirObrigada, Anônimo!
ExcluirÉ isso Dona Bonna! A vida dá chacoalhões e a senhora sabe bem como enfrentá-los. Saudades!
ResponderExcluirDorotéia! Que saudade!
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