Essa velha que sou eu

 

Imagem criada com co-pilot.

Acordei as 5 da manhã. Chuva lá fora com um frio mais ameno. A dor nas costas continua. Cada manhã é uma parte diferente do corpo que dói e eu já ando cansada disso tudo. Ando cansada também dessas noites bostas que venho tendo.

Eu sei que já virei um disco riscado explicando para todo mundo que a razão dos meus dissabores corporais é a menopausa. Pós-menopausa, para ser mais exata.

A velhice está me desafiando a descobrir uma pessoa que não conheço,  e  a me despedir de uma pessoa que não existe mais. Lugar ruim esse em que não se pode mais ser quem se era e não se sabe quem se vai ser.  

Antes eu podia brincar com a cara assustada das pessoas que me viam mãe com cara de menina. Hoje eu tenho cara de mãe velha e de avó. Eu não consigo nem ocupar o espaço de aposentados que, muito devagarinho, se recolhem ao ser o que for.  No fundo, nem o mundo me deixa esse  recolhimento. Porque eu e todas as minhas amigas na minha idade estão correndo, correndo com os lobos, nadando com os tubarões, continuando bravamente a caminhada do ser produtivo numa sociedade que não dá o tempo das coisas. Que não deixa o curso seguir na velocidade certa, porque precisamos produzir, fazer, ter. E no que concerne o ser, não se sabe mais quem se é. 

Eu estou aqui, brigando com esse novo ser que apareceu no espelho sem ser convidado, ostentando uns pelos que não deveriam estar ali no queixo e umas rugas fundas que pela primeira vez me fizeram ler e pesquisar sobre procedimentos estéticos.

Levanto e faço xixi. O sono foi-se embora de vez. Se eu tentar dormir agora vai ser aquela tortura porque logo preciso levantar. Eu poderia ter um manhã lenta, checando mil vídeos no celular. A cena me deprime. Eu, sem dormir, chuva e escuro lá fora, e eu aqui só esperando o dia, cheio das obrigações que virão me atropelar como sempre.

Que cena ridícula.

Decido arrumar minhas coisas e ir nadar. A água talvez ajude a ajustar as coisas. E já que eu tenho que fazer exercício, façamos essa insônia jogar a favor de algo produtivo. Produzir é a lei. E os coachs fitness apontam que todo tempo precisa ser usado, todo.

Pego o trem com mais cinco pessoas enconcoradas nos cantos, tentando ainda segurar os últimos minutos de sono. A claridade nem se deu ao luxo de aparecer.

Caminho com uma garoa no rosto. O dia acordando, muito preguiçoso. Entro no vestiário. Silêncio absoluto. Uma mulher aqui, outra ali. Todas imersas nos seus pensamentos e na rotina de colocar o maiô, toca, óculos. Acordando. Algumas almas ainda voltando aos corpos.

Corpos caídos, pelancudos, murchos, manchados do sol de uma vida. Rugas, muitas. Só mulheres mais velhas. Cabelos cinzas, grisalhos, brancos. Longos e curtos.

Num canto dos armários, o silêncio foi quebrado por um sussurro cadenciado:

- ok... ok... ok...

Num diálogo com ela mesma, a senhora ia seguindo com os preparatórios para entrar na piscina fechando cada etapa a ser cumprida: - ok. Um zíper era fechado. Ok. Uma sacola era guardada no armário. Ok. Um chinelo era tirado da mochila.

As outras ouviam. Ou não. Fora daquele “ok” sussurrado só havia o silêncio madrugueiro.

Naquele vestiário, numa manhã fria e cinzenta de Boston havia um combinado, um acordo silencioso. 

Um acordo de mulheres que estavam silenciosamente enfrentando, cada uma, seus monstros. 

Mulheres que, em vez de ficar remoendo os desfazeres da idade, das dores, dos corpos, escolheram ir em frente. Fiquei me vendo naqueles corpos. Imaginando o quanto elas já brigaram com o espelho, com a idade, com esse tempo infalível.

Sileciosamente os corpos se moveram, caminharam, e um a um se jogou na piscina. Em silêncio.

Fui também. Agora eu era parte dessa turma. Velha. Me joguei. Na água, os pensamentos se dissolveram, as sensações flutuavam. A vida ficou mais leve. Eu flutuei.


P.S. Texto iniciado em fevereiro de 2025.

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