O Prius morreu.

 Sim, o Prius é um carro.




O problema é que eu tenho esse costume de humanizar meus carros. Vem de muito tempo. Carros para mim sempre simbolizaram muito mais do que uma máquina que me leva do ponto A para o ponto B.

Eu casei muito cedo com uma pessoa que via carros como entidades. Não se podia lavar com a esponja errada, e deusmelivre se a chave do carro ou qualquer outra coisa raspasse na lataria. Um horror se você “arranhasse” a marcha. Eu tinha que usar os carros dele como se fossem bonecas de porcelana, e invariavelmente eu sempre estava errada ou fazia algo de errado.



Quando eu passei no vestibular ganhei dos meus pais (sim, burguesa com consciência do meu privilégio) meu primeiro carro. Deve ter sido ali que começou essa relação mais humanizada com a máquina. Aquele carrinho simples, popular e acessível da época, virou minha carta de liberdade. Era a chance de relaxar enquanto dirigia, de saber que ninguém ia gritar comigo se algo acontecesse. Nele, eu podia me deslocar com segurança e podia dar carona para quem eu quisesse. Foi ali que carros passaram a ser parceiros de vida. Eu comecei a dar-lhes nomes. O primeiro era o “corsa da mamãe” porque o Diogo, pequenino, assim o chamava.

Tive depois o oliver, um Uno verde oliva. Tive o max, um Palio branco. E logo depois do max, a ana, um Palio azul marinho. Eu os chamava pelo nome. Dizia:

- Vou pegar o oliver e vamos juntos então.

-Espera que busco você com o max.

- Vem, que tem espaço na ana.

Os dois últimos nomes vieram das placas que tinham as iniciais max e ana.

Certa vez eu cheguei no estacionamento da universidade em que eu dava aula e pedi aos valets para buscarem a ana para mim. Um aluno que me acompanhava perguntou:

- Você deixou uma pessoa dentro do seu carro o dia todo?

Os valets eram velhos conhecidos, do tempo do max e ficaram felizes quando o troquei pela ana. Chamavam, também, os carros pelos nomes.

Carro, para mim, era como que uma extensão do meu território. Eu tinha o poder e fazia questão de levar as pessoas para casa. Eu buscava e levava meu filho para onde fosse. Numa emergência com ele, eu estaria lá nos minutos que precisasse para chegar. Não dependia de ninguém. Eu ia para casa na hora que quisesse, de qualquer lugar. Eu poderia decidir num sábado à tarde ir para a praia e voltar. Era liberdade, era o poder da mobilidade e de decidir os rumos da minha própria vida.



Em 2009, eu vendi a ana para pagar o intercâmbio do meu filho e decidi que já que ele estava grande e não precisava ser buscado; mais, ele nem estaria no país, era hora de eu me planejar e usar mais o transporte público, que na minha cidade se vendia como modelo para outras capitais. De fato, da minha casa até a universidade, eu levava 20 minutos com o ônibus expresso – com a canaleta dedicada – quando de carro eu levava 35 minutos. Meus pais moravam muito perto de mim e eu os forcei a tornar os carros deles comunitários. Quando eu precisava ir ao mercado ou algum outro lugar que necessitasse de carro, eu emprestava o da minha mãe ou do meu pai e os ajudava na manutenção e combustível. Eu estava tentando uma vida um pouco mais alternativa, menos poluidora e menos individualista.

Nesse tempo, eu me desliguei de marcas de carro, de modelos, de novos lançamentos. Não eram mais importantes.

Aprendi a engolir meu orgulho e aceitar caronas.

Quando decidimos mudar para os Estados Unidos, em 2016, o marido avisou que precisaríamos de um carro. Eu torci o nariz. Perguntei se não dava para usar transporte público no Maine. Era praticamente impossível na ilha onde iríamos viver.

Ele chegou antes no país e foi procurar um carro para comprarmos. Encontrou um Prius 2010 vermelho. Sem saber ao certo que tipo de carro era, perguntei ao filho, que tinha virado super entendedor de carros.

-Esse carro é a tua cara, mãe. Híbrido, ecológico. Sem potência.



Gostei. Compramos. E esse ficou sendo o nosso carro até hoje de manhã.

Em muitos momentos o marido sugeria que deveríamos ter um segundo carro, e eu resistia bravamente. Dizia que podíamos ir organizando a nossa vida para ter um carro só[1].

Foi com o Prius que o marido me buscou quando aterrissei no país para ficar. Foi com esse carro que buscamos a Pandora que estava vindo em outro avião.

Foi nesse carro que visitei pela primeira vez o parque Acadia, onde eu ia morar pelos próximos três anos.




O Prius me levou para votar em Boston em duas eleições presidenciais brasileiras. Fomos com ele, também, para New Hampshire, New York, Rhode Island, Connecticut, Massachusetts.

Aprendi a dirigir na neve com esse Prius vermelho. Aprendi a limpar a neve dele e de como fazer tudo de maneira segura. O dirigi no meu primeiro ( e único) squall (borrasca de neve).

Fui parada por um policial uma vez nesse mesmo Prius (velocidade...)

Foi viajando nele que minha irmã e meu pai que não está mais nessa dimensão, conheceram o Maine.

Pandora dormiu centenas de vezes no banco de trás, sempre coberto por um lençol. Depois ela ganhou uma cama elevada e viajava como uma madame.

Fizemos mudança com esse Prius. Levamos muita arte nele.

Carreguei vizinhos para consultas médicas.

Ele foi ficando velhinho, mas sempre fizemos a manutenção correta, trocando tudo que era recomendado.

Na semana passada, com 15 anos, o Prius se foi. Do jeito mais seguro possível, em um estacionamento de mercado. O eixo da roda de trás, já corroído por tanta neve e sal, quebrou. O preço do conserto suplantava o preço do carro. Era hora de deixar ir.



Eu não estava preparada para isso. Mesmo com sugestões que o marido fazia de tempo em tempo que deveríamos pensar em trocar de carro, eu resistia bravamente. O Prius estava funcionando, era econômico e seguro. A gente já conhecia o histórico de manutenção, já tinhamos trocado os pneus, enfim, já era parte da família.

Há um momento em que tudo se vai, e dessa vez não teve jeito. O guincho veio buscá-lo essa manhã. Ele foi vendido para um desmonte. Como um bom doador, espero que suas partes ajudem muitos outros carros continuarem a rodar. O Prius (nunca dei outro nome para ele) foi um guerreiro nessa luta difícil contra a obsolescência programada.

Eu sei, é só uma máquina. Mas as máquinas também contam histórias.





[1] Durante um ano, por conta de trabalho, tivemos um Subaru, mas foi nos mudarmos para Boston que o vendemos.

 

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