Natal em Setembro? Tem em Allston

 Eu vivo nos Estados Unidos há oito anos (celebrados agora em agosto) e,  durante esse tempo eu evitei ficar fazendo os textos ou postagens sobre “a vida nos Estados Unidos”. As razões são óbvias: não tem como generalizar impressões da vida em um país e acho super reducionista quem fica explicando a vida no exterior como se fosse assim no país todo. Imagina explicar como é a vida no Brasil? Você consegue traçar um paralelo do que é viver no Acre com o que é viver no Rio Grande do Sul?

Foi por essa razão que quando fui convidada para participar de uma live no Instagram pela querida Leticia Muller para falar da vida aqui, eu fiz o adendo explicando que iria falar da vida no Maine (estado onde eu morava).

Enfim, esse preâmbulo todo é para dizer que minha alma de jornalista quer contar uma estória bem específica relacionada ao bairro/ região onde moro em Boston, estado do Massachussets. É algo curioso e localizado e que acontece todo ano, neste final de semana: Natal em Allston. É. Um tipo de Natal fora de época.

Vamos ao contexto. Não é novidade que Boston é sede de muitas instituições de ensino superior e berço das mais renomadas do país e do mundo – Harvard, por exemplo. Essas instituições movimentam bilhões de dolares por ano em recebimento de doações e investimento em pesquisa científica. Assim, atraem profissionais altamente capacitados em diversas área do conhecimento, tanto para dar aula, para estudar ou para trabalhar em laboratórios que estão vinculados a essas instituições ou não. Então é possível dizer que Boston tem uma alta concentração de intelectuais e investigadores, gente que vem para cá porque há espaço, necessidade e fundos para criar mais conhecimento.

Essa concentração de “cérebros” do mundo todo faz com que Boston seja uma metrópole super diversa, onde se ouve em um dia mais de cinco línguas diferentes na rua (falo por experiência própria). Diz-se também que aqui (o que inclui um monte de pequenos munícipios que formam a “grande” Boston) há a maior colônia de brasileiros fora do Brasil. E por conhecimento informal eu posso dizer que nossos cidadãos estão envolvidos em diversas atividades profissionais, mas grandemente concentrados em limpeza e construção civil. Outro povos e culturas trazem também suas especialidades e é possível encontrar restaurantes e mercados gregos, paquistaneses, indianos, coreanos, chineses, russos, palestinos, enfim, Boston é um centro de cultura global.  

Mas o interessante é que as regiões e pequenos municípios que a compõem não são homogêneos. Alguns grupos que colonizaram a região em séculos passados como os irlandeses (Southie) e italianos (North End) se concentram em determinadas áreas. Há, também, uma Chinatown. Brookline é majoritariamente judaica. Enfim, é bem interessante explorar as diversas regiões porque elas se diferem imensamente umas das outras, tanto em arquitetura quanto em cultura e atmosfera. 

Eu comecei a trabalhar para a Boston University em 2022 e no primeiro ano aluguei um apartamento da própria universidade localizado num porão de um edifício de tijolinho a vista (brownstones) bem característico da região – Fenway/Back Bay. Ali era como se eu vivesse dentro do Campus da Universidade apesar de que, diferente da Boston College ou da Harvard, a Boston University se espalha e se amalgama a cidade, com edifícios das mais de 17 escolas distribuidos ao redor de uma grande avenida chamada Commonwealth Ave. Então, nessa região, é possível ter um prédio onde há alguns apartamentos servindo para acomodar estudantes e outros apartamentos de famílias de trabalhadores, com filho, vó, papagaio. Mas geralmente, nessa região, o que você vê nas ruas são estudantes (Inclua-se os da Northeastern University qeu é bem perto), indo e vindo e famílias com maior poder aquisitivo (Gisele Budchen, quando era casada com Tom Brady, morava em um apartamento na extensão da Commonwealth Ave, perto de um parque chamado Public Garden/Commons).

No segundo ano morando aqui, completados em julho de 2023, nos mudamos – aí a família toda, incluindo marido e cã – para uma esquina onde duas regiões fazem fronteira: Allston e Brighton (ambas ainda consideradas bairros de Boston). Esse apartamento fica a 4 km do antigo e bem no meio do caminho entre a Boston University e a Boston College (sim, elas são duas instituições diferentes) e a atmosfera é totalmente outra. Aqui há muitos imigrantes, latinos, indianos, congoleses, mais sujeira, mais gente com menor poder aquisitivo, e muitos, muitos, muitos estudantes. Não é verdade que todo estudante de Boston vem de famílias com dinheiro. Apesar de ser um absurdo o que um aluno paga na BU (80 mil dólares por ano), muitos estão lá por meio de bolsas. Então alunos que não moram dentro do campus, nos dormitórios (na BU são em torno de 13 mil estudantes morando no campus), acabam achando apartamentos mais acessíveis (não se iluda, Boston é caríssima em geral) para dividir com outros alunos. E é nessa combinação entre um bando de estudantes concentrados em um bairro, o começo do ano letivo (em setembro) que significa quase sempre o início de muitos contratos de alugueis, com uma alta rotatividade de moradores (quem se forma vai embora, estudantes estão sempre chegando, e é muito raro alguém morar no mesmo lugar por todo o tempo do estudo), que acontece um fenômeno chamado Allston Christmas ou Natal de Allston. 

O termo era novo, mas ano passado pude testemunhar pessoalmente como esse evento acontece. Como há muito estudante que se muda para outros apartamentos com outro grupo de colegas, há centenas de móveis que acabam ficando duplicados. Imagine que você tem um sofá mas o colega que está se mudando para o seu apartamento está trazendo um sofá também. Um dos sofás precisa ir.  Boston não têm os carrinheiros – não tem favelas – e qualquer coisa grande da qual você quer se desfazer é preciso pagar uma equipe para vir buscar e dar um destino. Se você só levar para o lixo, a própria companhia de lixo cobra adicional para levar algo grande (um colchão está em torno de $150). Se você deixar na frente do seu prédio ou da sua casa você (ou o dono do imóvel) é multado pela cidade. Há também vários lugares que aceitam doações para pessoas mais pobres, mas quase sempre cobra-se para fazer o transporte. Então, a galera desenvolveu um processo muito humano, que desvia das punições legais (até porque pelo volume de mudanças acontecendo, fica difícil para a polícia sair multando todo mundo) e deixa na calçada com um aviso dizendo “Free”. Ainda se pode ser multado, mas como nesse final de semana, está todo mundo se desfazendo de algo, ou em busca de algo, o número de coisas “de graça” na rua é impressionante. Assim, é possível que o sofá que você acabou de deixar na calçada, seja pego meia hora depois por um outro estudante/morador, que esteja precisando de um sofá. E há coisas de todo tipo, desde espelhos, estantes para livros, escrivaninhas, organizadores, e uma infinidade de pequenos objetos desde livros a louças.  

Outra coisa comum é ver pessoas com uma caminhoneta recolhendo tudo em um dia e expondo (vendendo) em outro, em uma esquina específica, numa “loja” improvisada. Os grupos de Facebook são uma discussão à parte, mas ano passado teve uma moça coletando coisas no Allston Christmas e depois vendendo em uma “garage sale” e pelo Facebook. Ela foi hostilizada por boa parte dos usuários já que estava quebrando as regras “não escritas” do evento. Parece-me que essas regras englobam uma comunicação clara explicando se os móveis que estão na calçada são porque você está mudando naquele exato momento ou se estão para serem doados (bilhetinho “Free”, feito de qualquer material ajuda nesse esclarecimento); respeito ao código do quem chega antes tem prioridade; e se você está interessado, leve já, nem que seja nas costas (vi gente carregando sofá numa bicicleta). 

Durante esse final de semana o que os moradores de Allston mais vão ver são caminhões de mudanças, containers de mudança ou a caminhonete do vizinho cheia de cacarecos, muitos móveis e objetos nas calçadas e um punhado de vizinhos com cara de perdidos, estressados e cansados carregando todo o tipo de coisas de um lado para outro. 

Ah, algo comum de acontecer nesses dias também é vermos nas notícias pessoas que acabaram “Storrowed”, o que significa ter o caminhão de mudança preso em uma das pontes que são baixas em três avenidas específicas: a Storrow Drive, a Memorial Drive e a Soldier Field Drive. Como aqui contratar equipes de mudança custa um rim, a saída é você mesmo fazer a mudança, alugando o caminhão e catando os amigos para ajudarem a carregar. O risco que se provou muito comum, é de quem não está bem informado sair dirigindo o próprio caminhão de mudança que pode ser muito alto para passar nessas pontes. Numa situação dessas o enrosco é grande.

Allston Christmas já se tornou uma marca da região, tendo diversas contas no Instagram, virando um nome de banda, um filme e até uma sacola temática do supermercado local.

Pronto, como se diz no inglês, aqui estão os meus dois centavos sobre viver na fronteira de Allston e Brighton, em Boston - MA.  


Veja aqui na sequência alguns dos cliques de hoje...

Seu guarda pensando em quem multar pelo sofá vermelho

Praticamente uma sala na frente do prédio

Um dos 30 caminhões vistos hoje

Móveis esperando para serem mudados

Quem não tem caminhão, muda com caminhonete.

U-haul disputando as vagas de estacionamento

Deixando claro que podem pegar

Um trombone que não sobreviveu à mudança

A sacola promocional do supermercado - tudo é motivo para mkt


Tudo empacotado para ser carregado










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