Trocar de sapato e de alma

(*julho/2015)

 

Foi algo super casual. Eu estava muito estressada, no meio do mestrado (pobrezinha, nem sabia o que tinha por vir...), tinha acabado de me desfazer de mais um marido (assim mesmo, como quando a gente se desfaz e desiste do que era para se reconstruir) e estava conversando pelo messenger com um aluno do curso de comunicação que eu lecionava. Sim, era messenger naquela época. Estava vesga de tanto estudar, ler, escrever e confabular com autores diversos. O aluno (por quem até hoje tenho um carinho imenso) me mandou uma música dizendo que estava curtindo muito um novo tango. Oras, eu nem conhecia o velho tango, que dirá o novo. Era o Gotan Project. Eu disse que estava estudando como uma louca mas que a ideia de fazer umas aulas de dança, mesmo que fosse de tango, naquela altura do campeonato, era revigorante, empolgante.


Sempre gostei de dançar mas nunca tive motivação em casa para sair bailando. Meu pai foi criado em seminário, numa época que repetiam extenuamente que dança era coisa do diabo... Minha mãe, coitada, ficou sempre na vontade ou dançando com outros amigos.

Pois bem, começamos a fazer aula de tango todos os sábados, eu e esse aluno. Do jeito curitibano, claro. Bem afastado. E tudo dava errado. Não era falta de esforço, a gente realmente tentava copiar os melhores colegas e os professores...

Até o dia em que ele, observando outros casais, chegou para mim e disse:

- acho que a postura é diferente.  – super sem jeito, ele continua: você precisa tipo... grudar os peitos no meu peito e a gente, junto, tem que fazer um tipo de um triângulo, afastando os pés que daí a coisa sai.

Saiu. Super estranho grudar os peitos. Super estranho deixar-se tocar. Super estranho, mas os passos saíam. Era uma co-dependência, aprendi mais tarde. E comecei a aceitar o meu corpo e a ser tocada para bailar. Aprendi o abraço tanguero.

Pois então, como em tudo que faço eu tenho que me jogar, o professor era argentino e, bem, eu estava solteira. Claro que acabamos namorando e me enfiei no tango até os cabelos. Mergulhei na comunidade argentina em Curitiba, conheci um casal fantástico - ele italiano, ela portenha – que foram meus mestres preferidos, conheci o meu amigo "de 20 anos"(era novo mas era como se estivesse sido sempre) numa das centenas de noites milongueiras e aprendi a trocar o sapato. Sim, estranha no ninho, acompanhando toda a cultura argentina para aprender (nunca vou me esquecer da primeira Chacarera...), eu vi que todo mundo chegava aos bailes na pinta, tudo arrumado, mas com uma sacolinha do lado.

                            *No vídeo, Gisel e Alessandro: os meus sempre mestres de tango.


Era o sapato especial. O sapato de tango é especialmente construído, artesanalmente, e ajuda muito na arte de bailar direito. Fui entrando nesse mundo, comprei o meu primeiro sapato e saí feliz da vida com a minha sacolinha também. Mais tarde, já sabendo o que eu queria do sapato, comprei meu segundo par. E eles foram muito usados, ambos e os tenho até hoje. 

Meus companheiros de tango, com o figurino que ainda resiste


Foi com o tango que aprendi que para certas ocasiões é preciso trocar de sapato. Tudo fica mais preciso, mais tranquilo, se desenvolve com mais leveza. É preciso usar o sapato certo para certas caminhadas, para certos desafios. E, sem ter muita consciência, fui trocando de sapato onde ia, dependendo do que estava planejando.

A vida girou, o tango virou parte de mim, mas deixou de ser prática. Vieram outros namorados e os sapatos foram sendo trocados.

O próximo namorado escalava. Resolvemos, então, fazer uma troca de paixões. Ele faria tango comigo e eu faria escalada com ele. Um ótimo negócio. Mas não dava para escalar com os sapatos do tango. E lá fui eu comprar sapatos de escalada. Primeiro, uns provisórios, para ver se me acostumava com a coisa de ficar pendurada nas paredes. Nem um pouco confortáveis, os sapatos de escalada me ajudavam a entender o que o corpo precisava fazer numa subida de rocha, e eu aprendia o que eu queria e precisava de um sapato de escalada.


Essa sou eu rezando pro meu anjo me levar de tanto medo (Montezuma´s Tower)

A escalada virou um momento de companhia ao consorte e quando fomos, em 2013, ao Garden of the Gods no Colorado (Jardim dos Deuses - sim, esse lugar existe e é lindo) para escalar, era hora de ter sapatos à altura. Os antigos já estavam com furo e era hora de comprar um melhor. Pelo menos para mim. E foi assim que subi a Montezuma´s tower, o primeiro lugar em que tive uma crise de cagaço mesmo. A escalada foi fácil como subir uma escada. Mas a montanha era fininha e a subida muito exposta. Duvidei, sentei, chorei, me coloquei à prova, vi que os sapatos mereciam uma pessoa melhor e acabei terminando a subida.

A vida foi mudando. O tango ficou difícil de ser praticado por conta de uma artrose. As escaladas rarearam também. O mestrado virou doutorado e o objetivo era ir mais longe. Mais um par de sapatos era necessário. Dessa vez para ir para a Espanha. Oras, para me inculturar, eu precisava entender um pouco do...

Pode ver: riscado, gasto. Até os preguinhos já deram muito "punta" e "tacon" no chão.

...Flamenco. Fiz aula antes para chegar lá sabendo alguma coisa, e lá encontrei uma professora que dava aula de Flamenco-raiz em Sevilla. Gritando com todos os alunos. Das aulas e do rosto enérgico da professora, lembro até hoje, mas mais que isso, lembro do processo da compra do sapato de flamenco. Foi praticamente como comprar um carro. Tive uma aula técnica sobre os tipos de sapatos e materiais, procurei em diversos lugares. Conversei com um monte de gente. Minha mãe, achando que a demora era por causa de dinheiro se propôs a me dar de Natal. Depois de avaliar muito, resolvi que compraria o melhor. Essa decisão partiu da reflexão que fiz durante o processo. Comprar o melhor sapato nos obriga a sermos melhores do que imaginamos que podemos ser. Você precisa pelo menos batalhar para chegar no nível do seu sapato. Pois bem, ele está comigo até hoje, as aulas de flamenco continuaram em Curitiba, cheguei a fazer apresentações públicas com um grupo de meninas fantásticas.  Mais tarde me acompanharam em apresentação solo numa casa de repouso, na terra do Tio Sam, minha nova casa. Sim, os sapatos vieram comigo mesmo que eu não esteja praticando flamenco com a frequência que deveria. Eles são o lembrete que devo ser melhor sempre.

Bem, quem tem sapatos, não pára, né? Ainda mais quem tem condições de ter um sapato para cada projeto de pessoa que pretende ser.

O mundo foi girando, mudei de país, mudei de profissão, mudei quem eu era. Os sapatos mudaram também. Os últimos sapatos especiais – e falo no plural porque foram mais de 5 pares – foram para entregar cartas numa pequena cidade da costa do estado do Maine, nos EUA. Sim, me tornei carteira e precisava de sapatos decentes para dar suporte aos mais de 15 quilometros caminhados por dia... 6 dias por semana. Foram vários tênis pretos que acabavam por se desmontar e davam lugar a outros. Um ano depois, mesmo com sapatos especiais, o joelho e a alma não aguentaram o tranco. 

O primeiro par dos correios que durou dois meses e precisou ser trocado.


Por um tempo, então, meus pés ficaram descalços, ou com meias pela casa. Ficaram descalços também para acompanhar a pequena neta nas descobertas.

Aqueles momentos em que sapato nenhum dá conta...(foto: Isa Vellozo)


Em setembro de 2021 com o desafio de fazer pesquisa na chuvosa Irlanda, foi a vez de comprar galochas. Galochas que não me eram tão confortáveis quanto os sapatos de entregar cartas, mas que me mantiveram seca em um mês de caminhadas e entrevistas nas ruas.

Galochas compradas na Suíça para uma Irlanda molhada.


Voltei para calçados bem confortáveis, dando outra chance aos tênis do correio que restaram quando decidi trabalhar no “paraíso” e vender livros. Impressionante a diferença necessária entre um suporte para caminhadas constantes e um suporte para só ficar em pé. Os pés se acostumaram mais uma vez, e os sapatos foram adaptados para o conforto e evitar dores. Porque com esses desafios todos, as juntas, os ossos e o corpo não são mais os mesmos. 

Agora, um novo desafio pela frente pediu novos sapatos. Aproveitei a ida para minha cidade natal e o colo e assessoria da mãe (uma apaixonada por sapatos) para fazer as novas aquisições. Elas serão exatas para a minha necessidade. Nem tão esteticamente preocupadas, nem tão relaxadamente confortáveis. Esses meus novos sapatos terão a missão de sustentar os pés mas também uma mente, coração e corpo que vai cuidar, guiar e ensinar de novo. Não serão o centro das atenções, nem o item mais importante do meu aparato, mas serão parte. Mais uma parte de mim.

Eu sinto que assim como eu tenho ainda os sapatos de tango, de flamenco, de escalada e os tênis do correio (que uso para caminhar a cã), todas essas eus convivem.Todas moram em mim e eu as abraço e as levo para passear. Com o sapato certo. 


* Esse texto começou a ser escrito em julho de 2015. Como certas coisas que precisam de maturação, está fechando esse ciclo sete anos depois, em julho de 2022.

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