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Foi quando estava assistindo uma série britânica que me deparei com aquela decisão que temos que tomar em diversas situações na vida: lido com isso ou não?
Era um episódio de Dr. T, série
que apresenta o professor Tempest, um criminologista de Cambridge com TOC, que
foi convidado para trabalhar como conselheiro policial. Nesse episódio,
especificamente, houve um estupro no banheiro de uma universidade e a polícia
estava atrás do criminoso. A menina sobreviveu mas não conseguia lembrar de
nada do que houve para poder ajudar a polícia a reconhecê-lo. Chamaram Dr. T para conversar com ela e, a partir de
algumas técnicas, fazê-la se lembrar.
Dr. T explicou para a
menina:
- A falta de memória de um
acontecimento como esse é normal. Nosso cérebro tem a programação de apagar acontecimentos
traumáticos para não permitir que soframos novamente com a revisitação desses
momentos. Por isso você não lembra de
nada.
No drama do episódio o
professor consegue extrair da vítima alguns detalhes importantes que fazem a
polícia prender o estuprador.
Mistério da ficção
resolvido naquela noite, mas eu acabei com um mistério particular no meu colo.
Aquela constatação mexeu com coisas que há muito eu tinha aceitado com
resignação. Minha cabeça repetia: o cérebro apaga o que nos traumatiza.
A verdade é que lembro
muito pouco ou nada da minha infância e adolescência. Enquanto amigos meus
conseguem descrever cenas detalhadas de festas de Natal, de ir para a escola,
de amigos, nomes, etc, eu mal tenho alguns flashes que aparecem de vez em
quando. Não consigo colocar em perspectiva temporal esses pedaços de momentos. Definir
o que venho antes ou depois. Carrego somente algumas sensações desses flashes E
é isso.
Muitas gafes depois,
resolvi aceitar resignadamente que não lembro das coisas. Inúmeras situações bem desconfortáveis se
apresentaram com o tempo. No advento do orkut e, depois, do Facebook, gente que
eu não tinha a menor ideia de quem seria me adicionava e perguntava de mim com
uma familiaridade assustadora. Eu só pensava: “Quem é você, meu Deus?” E me
sentia muito, muito mal por não conseguir lembrar. Pior, a curiosidade me
matava. Eu ficava tentando imaginar que tipo de relacionamento eu tive com
aquela pessoa. “Fui legal com ela?”; “tivemos desavenças?” Nada. Até que
comecei a usar duas amigas, uma da escola e outra da faculdade/igreja para me
ajudar com essas lembranças. Claro que essas buscas sempre viram uma piada
imensa entre a gente. Ambas sabem nomes e sobrenomes de todo mundo, localizam esses
personagens no espaço-tempo para mim e eu fico lá, tentando puxar pela memória
alguma coisa. Nunca vem nada.
Aconteceu com ex-paquera.
O moço me chamou na mensagem do Facebook, todo feliz de ter me encontrado e eu
não tinha ideia de quem era. Acionei as minhas duas parceiras. Uma respondeu:
-Mulher, esse menino
sentava do seu lado em toda aula no segundo grau! Era caidinho por você.
-Oi?
-Estou falando. Conheci o
primo dele que tocava trombone e vivia numa cidade pequeníssima em Santa
Catarina.(Sim, ela tem essas minúcias de detalhes na memória...)
Com todo o respeito do
mundo comecei uma conversa com o moço deixando claro que eu não lembrava de
nada e quase pedindo perdão por algo que eu tenha dito há 30 anos. Contamos
resumidamente da vida, casamentos, filhos, etc. Ele estranhamente não tinha me
adicionado na rede social. O papo, então, desandou para expressões do tipo:
- Você continua linda.
-Mas esse seu marido tem
cuidado bem de você?
Ui! Uma coisa que a
maturidade me trouxe foi um radar bem afinado para enrascadas. Educadamente me
despedi do moço, bloqueei as mensagens e comentei com a minha amiga:
-Já entendi porque não
lembro dele. Típico cidadão de bem que dá os pulos de cerca. Estou fora.
A vida então, segue.
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Mas há certas lembranças
que chegam para desafiar o que sabemos de nós mesmos. Recentemente uma amiga
partilhou um projeto que fizemos juntas na rede, e me marcou. Uma mulher perguntou
se era eu mesma, escrevendo meu nome completo. Mais uma vez eu não tinha a
menor ideia de quem era. Fui ao perfil dela e vi que era professora de artes.
Pensei: -é a professora que nos ensinou a fazer um abajur! Eu nunca tinha
esquecido daquele projeto no colégio e estava bem feliz de ter lembrado,
finalmente, algo do passado. A contatei:
- Não, não fui sua
professora de artes. Fui estagiária da sua primeria professora de
alfabetização, a Tia Esmeralda. Acho que você tinha 7 anos.
Professora que sou, não me
cabia que alguém poderia lembrar do nome completo de um aluno que teve há 40
anos. Era muito intrigante aquela situação toda. Resolvi que tinha que
conversar com ela, afinal eu não lembrava de nada, nadinha de nada. Meu marido
ainda observou:
-mas você não tem medo de
descobrir os motivos que fazem ela lembrar de você?
- eu não. A essa altura eu
quero entender porque eu apago essas coisas tão fortemente.
Na conversa com a
professora, ela me conta que estava muito feliz de me encontrar de novo. Eu fui
em frente, com meus questionamentos:
- mas me conta, como você
faz para lembrar de nomes completos de alunos que você ensinou há 40 anos? Devo
ter sido uma das mais horríveis para você ainda lembrar, não é?
- não, não, minha querida.
Lembro de alguns nome completos porque eu era responsável por corrigir os
cadernos de cada um de vocês. Tia Esmeralda era muito, muito exigente, comigo e
com vocês. E você era o modelo da turma. Seus cadernos eram de um esmero sem igual,
a gente normalmente os usava como modelo para os outros colegas copiarem. Você aprendia
rápido e daí era colocada para ajudar os outros que tinham mais dificuldade.
Toda vez que a Tia Esmeralda precisava de algo fora da sala, era a você que ela
pedia.
Eu fui ficando tonta
enquanto ela falava no telefone. A escada da escola com aquele granito cinza
chapiscado e bordas arredondadas foi aparecendo na minha frente. O corredor
vazio, frio e eu sozinha subindo para buscar um apagador e uma caixa de giz no
almoxarifado no andar de cima. A quadra de esportes ali de fora. O barulho dos
carros e o eco que fazia naquelas paredes escuras. O cheiro de material escolar
novo misturado com produtos de limpeza. As memórias foram vindo e eu as
agarrava com toda força para que me trouxessem mais.
Me despedi, sentei no chão
da minha sala tentando assimilar isso tudo. Marido veio ver o que estava
acontecendo e, depois de ouvir o que eu tinha descoberto disse:
-Puxa, como modelo, você
não podia errar. Que missão pesada para uma criança de 7 anos...
Ele saiu e e fiquei ali
sentada digerindo tudo aquilo. Dali, várias cenas da minha infância e
adolescência vieram galopando como cavalos selvagens e me atropelando. Entendi
porque 10 anos depois engravidei adolescente quebrando qualquer regra social ou
de expectativa que minha família tinha. As lágrimas foram descendo devagar e
pelas próximas horas, ali no chão, acolhi aquela pequena eu. A abracei e disse
que estavávamos bem, que tínhamos crescido, aprendido um monte e que não
precisávamos mais satisfazer as expectativas de ninguém.
Não precisei do Dr.T. Mas
entendi porque meu cérebro estava me protegendo. E fiquei grata de poder lidar
com essas memórias quando agora tenho ferramentas para isso.
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