Um Boticelli de hoje



Essa sou eu dando uma mãozinha...

Ok, posso estar exagerando em comparar o marido a Boticelli, mas sabe-se lá como as gerações vindouras vão encarar a arte que fazemos hoje em dia, não é? Vai que viramos todos gênios da estética das relações com o mundo e acabamos criando um movimento novo chamado: ESTÁ TUDO ERRADO MESMO.

 Eu ia rir. Ou chorar. Não quero aqui discutir qualidade de arte - se é que essa discussão ainda é válida, já que depois de Duchamps, pinico é arte (oook, estou simplificando, pera lá).

A questão que trago agora é sobre a dor e a tortura que sempre foi fazer arte. Como é sofrido!

Boticelli nasceu em 1445, queria pintar e fazer esculturas num mundo movido pela compra e venda de mercadorias. Não era qualquer pessoa que poderia ter uma obra de arte em casa e os artistas que realmente queriam se dedicar a criar, passavam fome. Não é à toa a insígnia do "starving artist". É só estudar a vida de qualquer artista hoje reconhecido, que vamos perceber um padrão: ou era um pária da sociedade, vivendo uma vida de necessidade com dívidas ou tinha um seleto grupo de abastados (diga-se banqueiros, empresários e governantes) dando suporte para o seu trabalho. Sim, trabalho. Arte dá trabalho. Arte é trabalho. E por mais que se repita e se assimile isso hoje, há ainda muito preconceito e julgamento de quem faz arte. 

Eu julgo. Mora em mim uma senhora rígida que está gritando no meu ouvido que estou perdendo tempo escrevendo esse texto. Texto que não pagará conta alguma dessa casa. Tempo que eu poderia estar usando para fazer algo produtivo dentro das lógicas do capital, que seria trabalhar para trocar esse trabalho por dinheiro que daí compraria produtos de consumo.  

Minha mãe está até hoje tendo problemas para sentar e ler um livro porque tem nela a voz da mãe dela dizendo que quem senta para ler livro é porque não quer fazer o serviço da casa... 

Dizem que temos uma memória genética e vejo lógica nisso porque há duas de mim que ficam brigando quando resolvo ler um livro: a neta da Iracema que ouve ela gritando sobre os serviços da casa e a filha do Rogério, que passou a adolescência e idade adulta estudando no seminário certo de que quem estuda, vence na vida. Ainda assim, a filha do Rogério sabe que o que se estuda, precisa ter uma função, um motivo, um porque, um fim. Mesmo que seja filosofia para entender o mundo de uma forma mais profunda e tirar proveito disso de alguma maneira. Arte como fruição? Nem pensar. Fui construída em um mundo funcionalista e essa é uma das características mais profundamente tatuadas na minha personalidade. Há de haver um fim para tudo.  

Então é essa pessoa controversa que vos escreve que casou com um artista. Não, não foi de propósito apesar de brincar que estou fazendo investimento a longo prazo, já que há mais de 10 anos sou a auxiliar-mor de penduração de quadros, organização de stands, limpeza de estúdio, transporte de frágeis e medição de paredes e inclinações. 

Ele, por sua vez, lutando contra o que nasceu para fazer, foi várias coisas na vida, desde treinador de beisebol, jornalista, assessor político, acadêmico, analista de orçamento em hospital. Nunca se achou. Tudo era uma imensa tortura. Até que decidiu pintar. 

E como pintura, mais de 576 anos depois de Boticelli, ainda não dá dinheiro para pagar suas contas se você não tiver seu Médici, marido teve que pintar e continuar trabalhando com o que viesse pela frente e não tomasse todo o tempo do mundo. Para quem quer ser seu próprio mecenas, a vida é dupla e é preciso aceitar que nem sempre se poderá desenvolver todo o potencial porque o tempo e energia precisa ser dividido entre sobreviver e criar.

Para provar que nada mudou nessas centenas de anos, semana passada penduramos um mural que foi encomendado pela faculdade aqui da cidade. Uma micro-verba foi alocada para a recuperação de duas janelas de um edifício da faculdade. Houve uma chamada e o Boticelli daqui de casa ganhou a possibilidade de fazer o trabalho. Por mais de mês ele brigou com ele mesmo e com as cores para fazer algo que viesse de sua expressão e ao mesmo tempo fosse agradável ao olhar dos passantes. A percepção comum de quem via era de que, a criação que traz formas abstratas de dois ícones da pequena cidade: o moinho e a igreja, parecia um vitral de igreja.

Não foi a intenção, foi o processo que acabou nesse efeito. 

E, pendurando o mural, percebi que a arte e os artistas estão fadados a esse destino: alguém de posses precisa ver a importância de ir além dos serviços da casa ou da troca de bens de consumo. Sem esse suporte a arte vai sobreviver somente a partir dos loucos que decidem passar fome ou dos que têm uma necessidade tão visceral de criar que o fazem às custas de outras áreas da vida, como o lazer ou a socialização.

 Sem esses loucos, a vida se torna uma eterna troca de bens de consumo. Porque viver sem arte é estar fadado a superfície. 


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