Um mergulho no vício

 

Coloquei o pé. O quentinho subiu para a perna. Devagar fui entrando na banheira e sentindo a água quente me abraçar. Não lembro quando foi a última vez que tomei um banho de banheira. Ou como dizem aqui, soaking bath, o que se traduz como um banho de molho. Molho. Era isso. Eu queria ficar de molho, de preferência, como quando fazia mergulho, naquela paz silenciosa embaixo da água. Sem ouvir os barulhos do mundo, ou se vierem, que se tornem uns murmúrios sem sentido.

Como meu amigo ortopedista recomendou, o quente da água amenizou a dor no joelho. A banheira é pequena e não consigo ficar com  perna esticada e deitar os ombros e pescoços doídos no calor da água. Revezo. Deixo os joelhos se aquecerem enquanto massageio o sal nos ombros e pescoço. Quando foi mesmo a última vez que tomei um banho assim?

Deve ter sido em Bar Harbor. Foi a primeira casa em que morei que tinha essas soaking tubs. O que é diferente de uma whirlpoll. A soaking tub é uma banheira de colocar água e pronto. Tipo uma baciona. A whirlpool é a banheira de hidromassagem. Sempre foi um luxo essa última. A minha vida toda tive só chuveiro nas poucas casas em que morei. De molho mesmo, eu podia colocar o pé num balde, e nem sempre cabia. Até que o pai e mãe construiram a casa. Fizeram uma banheira de hidromassagem na suíte. Coisa fina. Eu, que morava a umas 8 quadras da casa deles, nos finais de semana em que tinha muita dor nas costas, ou estava muito cansada, montava a minha trouxa com toalha e uma muda de roupa e ia na casa da mãe tomar banho de banheira de hidromassagem. Era um evento. Hoje, olhando para trás, vejo que o que mais me relaxava era poder parar e conversar com os dois, as vezes tomando um café depois do banho, contando da vida sem compromisso. Um colo que me faz uma falta infinita hoje.

Resolvo dobrar os joelhos e escorregar os ombros e pescoço na água. Afundei de pouquinho. Dane-se se entrar água no ouvido. Eu seco depois. Ah, o silêncio. É como se a água filtrasse os ruídos externos. Tudo fica borrado, indefinido, looonge e a gente se obriga a se voltar para dentro.

Pensei no motivo das dores: trabalho. Pela primeira vez na vida eu tenho que brigar para ter um diazinho de folga. Workaholic inveterada, nunca me imaginei suplicando por qualquer dia sem trabalho.

Sempre foi um vício. Lidei na terapia muitas vezes com o problema. Não cheguei a ser internada porque é um vício muito bem visto e altamente venerado na sociedade em que vivemos. Sim, trabalhar demais é digno, é honroso, e o mais importante nessa lógica, faz você ter sucesso (o que nesse caso seria dinheiro e status).  A questão é que nunca trabalhei pelo dinheiro em si. O meu vício tem um mecanismo de recompensa que não é monetário. Como todo viciado, você faz uso da droga para ter uma recompensa, seja ela uma anestesia dos problemas, prazer momentâneo, picos de energia. E o que determina um vício é você não conseguir ficar sem a fonte dessa recompensa. Anos de terapia me fizeram entender exatamente como esse meu vício funciona. Como a minha recompensa não é monetária, não é o trabalho formal só que funciona para mim. É o qualquer fazer. A recompensa? Produzir. Pode ser um texto, pode ser uma arrumação na casa, pode ser uma tese, pode ser uma pintura num móvel, poder ser um livro, pode ser um projeto, pode ser uma rota de entrega de cartas, pode ser um aula finalizada, pode ser um teste criado, pode ser uma palestra feita, até um bolo. Um bolo. Finalizar uma série de tv não entra nesse rol. Não sei ainda porque, vou investigar mais. Mas ver tv, para mim é uma das coisas mais desvinculadas do trabalho/vício/produção, por isso inventei de fazer tear ou costurar enquanto vejo tv. Assim as mãos ficam ocupadas e produzo algo enquanto me atualizo nos filmes e séries. Eu gosto deles. Adoro. O que não consigo é ficar parada, assistindo. Assim, só curtindo.

Comecei a respirar olhando a minha barriga submersa na água. A respiração fazia o corpo flutuar, para cima e para baixo. Lembrei do curso de mergulho. É preciso dominar o equilíbrio entre os pesos que a gente carrega para submergir e o ar inflado no colete. Sim, naturalmente a gente boiaria. Lembrei de, no curso de mergulho, ter colocado alguns pesos e de acordo com a minha respiração ficar subindo e descendo na água. O professor apontou como um ótimo exercício de controle no mergulho. Coisa deliciosa de se fazer. Imagina controlar a posição do corpo todo por meio do respirar?

Continuei brincando na água vendo o tórax e a barriga subirem e descerem de acordo com a minha respiração. Respirar. Quantas vezes no dia eu esqueci de respirar decentemente?

Foram vários tipos de trabalhos pelos quais passei nessa vida. Em todos eu ia até meus limites gritarem. Tive inflamação na sacro-ilíaca umas três vezes – uma delas tentando mover um pinheirinho de Natal... Tensões e embolamentos nos ombros e lombares, então, sempre foram o foco de dores imensas quando eu exagerava na frente do computador ou esquecia de fazer exercícios, alongar, dançar. Gastrite num tive porque não engulo desaforo. Mas aconteceu de ter umas dores de garganta por coisas não ditas dentro do estresse.

Tudo nos serve de lição. Aprendi com essas dores todas que preciso dizer como me sinto, de maneira educada e polida, mas preciso colocar limites também nos projetos.

Foi assim que ontem entrei na sala da chefe, depois de 12 horas caminhando como uma condenada entregando cartas, boa parte no breu noturno outonal do Maine com uma lanterna de cabeça, e balancei o cronograma da semana na frente dela:

 - what is this? Why I am schedule for working tomorrow? You told me you needed me last Sunday so you would give me Tuesday off. Why my name is here? Please, can you review this? Now?

Fui polida. Nessas horas você esquece que pode ser demitida, que há hierarquia, mas não esquece suas origens e valores. Não é porque você está puta que vai sair gritando por aí. O efeito da calma é muito mais efetivo. Ela pegou o cronograma, começou a gaguejar e dizer que eu tinha dito que um dia qualquer de folga seria o ideal. Interrompi.

- Ms. Boss, when we talked at the parking lot you said you put me to work on Sunday but I would have the Tuesday off. I just want you to keep your word. Please.

Para chegar nesse ponto eu posso dizer que alcancei o meu limite de dor corporal e de resiliência mental. Suplantou qualquer vício em trabalho. Dizem que a gente aprende pelo amor ou pela dor...

Tudo começou com caminhadas de 12 a 15 quilômetros por dia entregando cartas. Tem gente que me pergunta: - mas você não dirige? Dirijo. Até porque há um monte de caixas imensas para serem entregues que precisam ser carregadas num caminhão. Várias delas. Americanos compram muito, tudo, o tempo todo. É o clichê que já conhecemos do país da imensa produção de coisas e lixo. Muito lixo.

Você estaciona o caminhãozinho em um ponto pré-determinado e faz o que se chama de loop, uma voltona nas casas, uma ronda. Pega as cartas todas, carrega no braço em duas pilhas e mais todos os pacotinhos que cabem na sua bolsa e sai caminhando e entregando... e ouvindo a canção... Não, ouvir a canção não pode porque não se pode ter nada nos ouvidos. Safety first. Vai que tem um cachorro raivoso solto e sedento por sangue de uma carteira distraída? Aprende-se no treinamento que é assim que tem que ser. Tem que carregar tudo muito atento à sua volta. E se não bastasse seus chefes de vez em quando resolverem te seguir para saber se você está cumprindo os protocolos, você carrega um leitor de códigos de barra que tem a sua posição de GPS no momento exato. O que permite que seu chefe controle sua velocidade, localização, rota, etc sem levantar a bunda da cadeira, do escritório. Então nada de parar para descansar ou ficar de conversê, viu?

Enfim, no início vieram as dores musculares por seguir essa rotina durante seis dias na semana, em torno de 8 a 10 horas por dia. Daí algumas pessoas no escritório entraram de férias e em vez de colocarem substitutos, dividiram o trabalho dessas pessoas entre quem ficou. As horas e a carga aumentaram. Como sou soldado raso e garantia trabalhista aqui é pior que Coelho da Páscoa, porque realmente acreditam que existe dentro da USPS, fui a primeira a ser jogada para trabalhar aos domingos (entregando caixas da Amazon, olha só) e a tapar os buracos feitos pelos que surtam e vão para casa abandonando o dia de trabalho (sim, tem disso e mais frequente do que se imagina).

O caminhãozinho
Um domingo qualquer e a qtdade de caixas que só eu entrego (umas 150). Multiplica isso por mais 5 outros entregadores só nessa cidadezinha (8 mil habitantes), daí multiplica por todas as cidades do país (imaginando que elas são pequenas como essa) e pelos domingos do ano. Entende que o lixo é infinito?




Um domingo qualquer 2 (visão de dentro da caçamba)


Aí, depois, a dor foi na minha artrite do dedão do pé e na planta fasciatis. Fiz um skype com o primo fisioterapeuta e ele me ensinou alguns alongamentos que ajudaram imensamente. Vai lá a pessoa chegar em casa caindo aos pedaços e lembrar de alongar tudo para no outro dia estar pronta de novo para mais um massacre.

Aí começaram as dores nos joelhos. Falei com algumas pessoas no correio perguntando se eles não tinham dores. Várias. Pessoas e dores. Todas resolvidas com analgésicos e cirurgias. Oi? A líder das atendentes locais disse que desde que começou a trabalhar no correio há anos e lá vai bolinha fez 3 cirurgias no joelho e tomava Aleve (o Advil) todos os dias para amenizar a dor. Mas que daí encontrou esse colágeno em pó que repõe o das juntas e deixa o cabelo e a pele uma maravilha... e nunca mais precisou tomar o analgésico...

É uma distopia. Na teoria eu debati muitas vezes sobre a posição do trabalho na nossa sociedade capitalista. Hoje eu sinto na pele, nos músculos, no joelho, o peso dessa instituição e o que estamos fazendo conosco. Como foi que viemos parar aqui, minha gente?

Sentei de novo na banheira e alonguei as pernas.

Para pagar esse aluguel desse mini-apartamentinho que tem uma banheira onde eu posso colocar meu joelho na água, eu preciso trabalhar. Essa é a nova forma de escravidão que criamos para nós. Mas, como toda Polyana, eu vejo o lado bom desse processo, ou fase, porque não é para sempre: estou me curando do meu vício. Primeiro, aprendendo a não assumir coisas demais ou coisas dos outros, só para ter a recompensa interna e egoística de me sentir fodona; segundo, cuidando do meu corpo com a yoga e alongamento feitos em casa; terceiro, valorizando imensamente os dias de folga e fazendo-os ser mesmo dias de folga.

Levantei. Liguei o chuveiro para lavar o cabelo pensando na próxima série que vou assistir.  De pijama.

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