Há um tempo atrás eu li um artigo de um moço no medium que contava alguns ensinamentos do seu pai, militar, da categoria Seal. É tipo uma tropa de elite da marinha. E ele explicou sobre a Hell Week.
Eu não me lembro o que me fez ler o texto do menino, muito menos porque eu li, mas eu acredito que alguns livros chegam a nossa mão porque precisam ser lidos naquele momento, ou melhor, precisamos da leitura deles. Entendo o mesmo com alguns texto aleatórios.
Pois bem, no texto ele contava sobre a Hell Week, uma semana destinada a "quebrar" os mais talentosos Seals, baixando a porcentagem dos 20% muito bons para os 5% absolutamente bons.
Foi pensando nesse específico artigo que atravessei a última semana.
Explico: para algumas pessoas entregar cartas é algo super simples. Você pega um amontoado de cartas e sai entregando. Sim, é isso, mas você tem que adicionar aí uma montuera de pacotes e caixas também. Coloque um roteiro definido que você, muitas vezes, não tem ideia de onde é. Encha uma van com tudo isso e defina que você tem somente aquele dia para entregar tudo, em torno de 8 a 10 horas. Agora multiplique isso por 12 rotas, 12 profissionais. Vai complicando, não é? Adicione a isso, um profissional afastado por duas semanas para ser testado para o Covid-19, outro em férias e vários com dias de folga atrasados. Assim, sem poder contar com ajuda de outros escritórios que não têm profissionais suficientes para enviar, as rotas vacantes acabam sendo divididas em quem fica. E foi desse jeito que acabei, junto com meus outros colegas, trabalhando uma média de 10 horas por dia, 6 dias por semana.
A pressão, nessa situação, é imensa. Não só psicológica, quando você vê aquele caminhão cheio e acha que não vai conseguir entregar tudo no dia, mas de saber se teu corpo vai aguentar caminhar em torno de 18 a 20 km por dia entregando cartas e subindo e descendo do caminhão, carregando caixas no calor não muito comum por essas bandas.
Isso, semana passada foi minha Hell Week. Foi só pensando no artigo do menino que consegui passar pela semana sem me descabelar ou surtar. Alguns colegas surtaram e simplesmente foram embora. E eu mantinha em minha cabeça que era só mais aquele dia, que ia passar. Para daí chegar no escritório no dia seguinte e ser avisada que alguém mais teve enxaqueca e teríamos mais trabalho aquele dia.
Eu sobrevivi e isso me dá um certo alívio. Não sei a que custas no meu corpo (sim, estou garantindo uma boa alimentação e rios de água), mas eu sobrevivi.
Por fora.
Porque na sexta, eu tive um ataque de choro no meio de uma rota. E o motivo não foi o volume de trabalho.
Eu estava no tal do "hanging there", só segurando as pontas, fazendo uma volta final de uma rota que não era minha, ao redor das 7 da noite e um casal em um carro para do meu lado, com cara de desesperados, e pede para que eu ligue para algum número porque eles acham que uma raposa foi atropelada. No mesmo dia eu tinha visto uma doninha fugir entre uma casa e outra e meu colega salvou uma tartaruga que tentava atravessar a rua.
Eu fiquei sem ação, sem saber para quem ligar e acabei ligando para o 911.
- Qual sua emergência?
- olha estou na rua High e um casal me parou dizendo que um animal que parece ser uma raposa foi atropelado um pouco mais à frente, esquina com a Wright. Para quem tenho que ligar?
- O animal está morto?
- eu não sei, não o vi.
- Mandaremos alguém.
Aos poucos fui chegando perto da esquina, entregando cartas e pensando no pobre animal que pode estar machucado e assustado tentando voltar para a casa dele. Pensei no limite de velocidade daquela rua que ninguém respeita. Pensei em tantas vidas, inclusive a de uma aranha que sem querer eu tinha matado na semana anterior quando tentei colocá-la para fora do carro. Pensei em que mundo estamos vivendo em que valores são tão inversos. Pensei nas mortes choráveis como Ju me lembrou da Butler filosofando. Pensei se esses tempos pandêmicos nos farão pessoas melhores.
Fui chegando perto do cruzamento com o coração acelerado, pensando no pobre animal. Não via nada. Pensei no pior, que estava machucado e fugiu e ia ter uma morte dolorosa e lenta no meio do mato.
Até que avistei o corpinho no meio da rua. Esqueci dos carros. Cheguei perto e vi. Era uma raposa mesmo.
Linda, Uma pelagem com uma combinação de cores tão linda que daria inveja a qualquer colorista de salão.
Eu não queria deixá-la ali.
Pensando na raiva (doença transmitida) peguei um dos panfletos que eu estava distribuindo e fiz de luva. Peguei a raposa pelas duas patas dianteiras e arrastei para o canto. Morta. Morta há muito pouco porque ainda estava morna, molinha. Observei. Dentes branquinhos.
E foi ali que eu desmontei.
Não vi razão para chorar um corpo de uma raposa, porque nossa sociedade aponta que animais não têm mortes choráveis. Mas eu chorei. Chorei sem parar, entregando cartas e vindo para casa. Chorei contando para o marido. Chorei contando para as amigas e estou chorando agora. E fico me perguntando: que mundo é esse que a gente escolhe que mortes chorar? Que banaliza a velocidade, o tiro na favela, que mata por muito pouco, muito pouco, muitas vezes por distração?
E hoje, refazendo as meditações do Dalai Lama me deparei com a resposta: está tudo interligado. Por isso estamos nessa bagunça. Sempre esteve tudo interligado. Não dá para ser feliz sozinho. E mesmo com um vírus vindo e explicando na prática isso para a gente, não acordamos.
Eu não sei se essa semana será uma Hell Week. Mas sei que os efeitos da última vão ficar comigo para sempre.
Eu não me lembro o que me fez ler o texto do menino, muito menos porque eu li, mas eu acredito que alguns livros chegam a nossa mão porque precisam ser lidos naquele momento, ou melhor, precisamos da leitura deles. Entendo o mesmo com alguns texto aleatórios.
Pois bem, no texto ele contava sobre a Hell Week, uma semana destinada a "quebrar" os mais talentosos Seals, baixando a porcentagem dos 20% muito bons para os 5% absolutamente bons.
Foi pensando nesse específico artigo que atravessei a última semana.
Explico: para algumas pessoas entregar cartas é algo super simples. Você pega um amontoado de cartas e sai entregando. Sim, é isso, mas você tem que adicionar aí uma montuera de pacotes e caixas também. Coloque um roteiro definido que você, muitas vezes, não tem ideia de onde é. Encha uma van com tudo isso e defina que você tem somente aquele dia para entregar tudo, em torno de 8 a 10 horas. Agora multiplique isso por 12 rotas, 12 profissionais. Vai complicando, não é? Adicione a isso, um profissional afastado por duas semanas para ser testado para o Covid-19, outro em férias e vários com dias de folga atrasados. Assim, sem poder contar com ajuda de outros escritórios que não têm profissionais suficientes para enviar, as rotas vacantes acabam sendo divididas em quem fica. E foi desse jeito que acabei, junto com meus outros colegas, trabalhando uma média de 10 horas por dia, 6 dias por semana.
A pressão, nessa situação, é imensa. Não só psicológica, quando você vê aquele caminhão cheio e acha que não vai conseguir entregar tudo no dia, mas de saber se teu corpo vai aguentar caminhar em torno de 18 a 20 km por dia entregando cartas e subindo e descendo do caminhão, carregando caixas no calor não muito comum por essas bandas.
Isso, semana passada foi minha Hell Week. Foi só pensando no artigo do menino que consegui passar pela semana sem me descabelar ou surtar. Alguns colegas surtaram e simplesmente foram embora. E eu mantinha em minha cabeça que era só mais aquele dia, que ia passar. Para daí chegar no escritório no dia seguinte e ser avisada que alguém mais teve enxaqueca e teríamos mais trabalho aquele dia.
Eu sobrevivi e isso me dá um certo alívio. Não sei a que custas no meu corpo (sim, estou garantindo uma boa alimentação e rios de água), mas eu sobrevivi.
Por fora.
Porque na sexta, eu tive um ataque de choro no meio de uma rota. E o motivo não foi o volume de trabalho.
Eu estava no tal do "hanging there", só segurando as pontas, fazendo uma volta final de uma rota que não era minha, ao redor das 7 da noite e um casal em um carro para do meu lado, com cara de desesperados, e pede para que eu ligue para algum número porque eles acham que uma raposa foi atropelada. No mesmo dia eu tinha visto uma doninha fugir entre uma casa e outra e meu colega salvou uma tartaruga que tentava atravessar a rua.
Eu fiquei sem ação, sem saber para quem ligar e acabei ligando para o 911.
- Qual sua emergência?
- olha estou na rua High e um casal me parou dizendo que um animal que parece ser uma raposa foi atropelado um pouco mais à frente, esquina com a Wright. Para quem tenho que ligar?
- O animal está morto?
- eu não sei, não o vi.
- Mandaremos alguém.
Aos poucos fui chegando perto da esquina, entregando cartas e pensando no pobre animal que pode estar machucado e assustado tentando voltar para a casa dele. Pensei no limite de velocidade daquela rua que ninguém respeita. Pensei em tantas vidas, inclusive a de uma aranha que sem querer eu tinha matado na semana anterior quando tentei colocá-la para fora do carro. Pensei em que mundo estamos vivendo em que valores são tão inversos. Pensei nas mortes choráveis como Ju me lembrou da Butler filosofando. Pensei se esses tempos pandêmicos nos farão pessoas melhores.
Fui chegando perto do cruzamento com o coração acelerado, pensando no pobre animal. Não via nada. Pensei no pior, que estava machucado e fugiu e ia ter uma morte dolorosa e lenta no meio do mato.
Até que avistei o corpinho no meio da rua. Esqueci dos carros. Cheguei perto e vi. Era uma raposa mesmo.
Linda, Uma pelagem com uma combinação de cores tão linda que daria inveja a qualquer colorista de salão.
Eu não queria deixá-la ali.
Pensando na raiva (doença transmitida) peguei um dos panfletos que eu estava distribuindo e fiz de luva. Peguei a raposa pelas duas patas dianteiras e arrastei para o canto. Morta. Morta há muito pouco porque ainda estava morna, molinha. Observei. Dentes branquinhos.
E foi ali que eu desmontei.
Não vi razão para chorar um corpo de uma raposa, porque nossa sociedade aponta que animais não têm mortes choráveis. Mas eu chorei. Chorei sem parar, entregando cartas e vindo para casa. Chorei contando para o marido. Chorei contando para as amigas e estou chorando agora. E fico me perguntando: que mundo é esse que a gente escolhe que mortes chorar? Que banaliza a velocidade, o tiro na favela, que mata por muito pouco, muito pouco, muitas vezes por distração?
E hoje, refazendo as meditações do Dalai Lama me deparei com a resposta: está tudo interligado. Por isso estamos nessa bagunça. Sempre esteve tudo interligado. Não dá para ser feliz sozinho. E mesmo com um vírus vindo e explicando na prática isso para a gente, não acordamos.
Eu não sei se essa semana será uma Hell Week. Mas sei que os efeitos da última vão ficar comigo para sempre.
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