Sugestão pós pandemia: vá viajar. Muito.

Não lembro de ter sonhado apaixonadamente, como muita gente, em sair pelo mundo viajando. A coisa de viajar foi acontecendo naturalmente de acordo com a vida, o trabalho, as amizades que decidem sair voando por aí.

Tenho amigos que nasceram com uma mochila nas costas. Muitos possuem uma base daquelas previstas no "Livro da Vida Tradicional Brasileira", do emprego fixo, de ter finalizado os estudos até faculdade, com casa e família montada. Mas daí saem pelo mundo a cada oportunidade de férias.
Tem outros que resolveram não casar ou filhos, possuem uma comunidade de amigos bem estruturada e saem pelo mundo sempre que dá, fazendo mais amigos.
Outros resolveram sair fazer intercâmbio e se acharam em outros países e resolveram construir a vida lá.

Outros acharam o amor em outros países e por lá ficaram.
Enfim, estou rodeada de gente que tem como uma das prioridades de vida sair pelo mundo, conhecer, experimentar, conviver, trocar. Boa parte da minha comunidade é essa, experimentadeira, que viaja.

E há uma experiência e conhecimento no processo de viajar que não tem faculdade ou doutorado ou curso no mundo que consiga ensinar.

Lembro que quando eu dava aulas para o curso de turismo os professores que não eram da área de conhecimento tinham a oportunidade de ter cursos específicos sobre turismo para poder adaptar os conteúdos para os alunos. Lembro muito bem de um curso da Simone, quando ela nos coordenava, explicando como o turismo nasceu, primeiro a partir de viagens de mercadores mas depois disso com o Grand Tour, no século 18, quando filhos de burgueses, nobre e comerciantes europeus saíam viajar para se prepararem culturalmente para serem membros de uma elite dominante.

É óbvio que o dinheiro não era problema para essas classes e talvez seja por isso que até hoje as famílias se perpetuam em posições de dominação em diversos países e no mundo. Conhecimento pode proporcionar mais negócios, mais conexões e mais poder.

E é aí que eu queria chegar. É preciso viajar. É preciso sair pelo mundo, se despir de visões pré- estabelecidas sobre o que é certo ou errado para assim podermos ser melhores, para poder construir um mundo melhor.

E não estou falando aqui de excursão protegida com tradutor e guia. Estou falando de sair da zona de conforto e pesquisar, e ler e aprender sobre o que se está vivenciando. Saber um pouco da língua se não for fluente. Há uma humildade, uma vulnerabilidade humana em quem se abre para o mundo e para o novo quando se está viajando que não há o que substitua. E nas minhas andanças e nesse casamento internacional e intercultural, colecionei experiências e aprendizados que uma vida no mesmo lugar não me ensinariam. Conto algumas que são bem particulares.
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Tenho a história de dois eventos de casamentos. Marido e eu estávamos começando o relacionamento e certos detalhes culturais e gastronômicos gritavam no nosso dia a dia. Todos os dias.
Em uma das festas de casamento no Brasil, marido foi se servir de comida e colocou no mesmo prato o molho de cachorro quente e uma fatia de melancia.  Uma das minhas amigas riu horrores dessa combinação nada comum para os brasileiros.
E eu contei para ela de um casamento em que participei nos Estados Unidos. Primeiro que a cerimônia começou as 14 horas, jantamos às 15 e a festa foi das 17 às 20. Dentre as comidas oferecidas estavam a combinação, nada comum para brasileiros, entre feijão e bolo de fubá (corn bread). Eu amei! Quando contei para essa minha amiga, ela fez um muxoxo.
Estar aberto a novas comidas, ser curioso, deixar os preconceitos em casa e realmente querer conhecer o novo é fundamental para ser uma pessoa melhor, também gastronomicamente falando.

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Esses dias aqui em casa, um dos roommates, estudante de uma das mais antigas e tradicionais universidades desse lado do país (coisa bem importante por essas bandas), me viu falando com a Pandora e, na sua inocência não viajada, perguntou:
- Você realmente acredita que ela entende Português?

Eu demorei um pouco para responder mas tentei ser didática.
- Ela é brasileira, ela aprendeu os comandos em português e sabe alguns em inglês. Minha relação com ela é em português.

A cara dele foi de surpresa ao mesmo tempo que, imagino, caiu a fichasobre o quanto aquela pergunta foi descabida. E eu fiquei pensando com meus botões que só alguém que não tem noção do que há "lá fora", que não tem relação com imigrantes ou estudantes internacionais pode fazer uma pergunta dessas. E é tão intrínseco que muitas vezes esse estranhamento não é percebido. Até que alguém de outra língua comece a falar perto do indivíduo e ele se force a entender que há mais do que sua bolha english speaking.

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Num grupo de Facebook que discute dicas sobre cidadania italiana um casal brasileiro que vive na Itália há algum tempo conta suas aventuras e dicas em vídeos do youtube. Decidi assistir um pela curiosidade de como as pessoas estão contando as suas histórias. O bate-papo é bem solto, sem muita produção, como se estivessem numa mesa conversando com os amigos. Nesse vídeo específico eles contam sobre como o homem conseguiu um trabalho. No meio da narração eles dão dicas ótimas de como agir, mas eu me apeguei a alguns comentários que mostram que até quem muda de país pode carregar essa falta de "gingado viajador" para qualquer lugar.
O rapaz dizia que precisou viajar para outra cidade para começar a trabalhar e contou que ficou em um hostel. Ambos não sabiam pronunciar a palavra hostel... Mas o pior foi a descrição. Disse que ficou com outros rapazes no mesmo quarto e um acendeu um enorme baseado naquela noite. Ele odiou.  A mulher ainda comenta que preferia que ele nem dormisse porque imaginava que alguém pudesse matar ele durante a noite...

Eu fiquei lembrando dos diversos hostels que fiquei: da Nova Zelândia com uma limpeza espetacular, os da Espanha, em que era possível ter um quarto para o casal separado, o de Roma que era um quarto dentro de um apartamento, em Montevideo em que não se podia tocar nas paredes do banheiro, em Cancun que era um quarto coletivo misto com camas de cimento e cortinas, ou ainda o misto que dividi em Sevilla logo que cheguei com dois respeitosíssimos irmãos húngaros. Todas as experiências foram fantásticas. Todas. Eu entendo que há um medo específico do brasileiro por conta de toda a violência que temos presente no país, mas fazer pesquisa detalhada, ler as avaliações de cada lugar e pedir recomendação de amigos que viajam bastante pode proteger a gente de muito perrengue. E essa expertise ou conhecimento específico (traduzindo) só se consegue de um jeito: viajando.

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Para entender que até o que se pesquisa tem que ser filtrado, conto também um causo meu.
Eu sabia, de ouvir falar e ler, que franceses em geral não gostam de falar inglês. Era quase de saber comum que são "arrogantes" e não dão muita atenção quando você fala inglês com eles. Pois bem, não falo francês e entendo como um voto de boa vontade tentar dizer algumas palavras para mostrar que respeita a a cultura local.
Assim, quando fui para um congresso em Montreal fiz algumas aulas de francês para pedir informação e me apresentar. Coisas-chave para perguntar em outro idioma. Então a frase mais usada foi:
- Bonjour! Parle vouz Englais?
Falei essa expressão para um motorista de ônibus e ele fez uma cara horrível e disse:
- Of course.
Vi que teve uma má vontade imensa em me dar as informações. E entendi o motivo porque também tinha conversado e lido sobre. Americanos em geral, que dividem a fronteira com o Canadá, a atravessam sempre com o comportamento de que todo mundo deveria falar inglês. Aliás, o povo americano é o que menos aprende línguas e eles até fazem piadas deles mesmo com isso.
Pois bem, entrei no ônibus e fui do lado do motorista perguntando coisas sobre a cidade, porque a numeração da rua era leste - oeste e tals. Num dado momento eu falei:
-Je sui Brésilien.
O moço virou o rosto e assustado disse:
- eu jurava que você era americana.
Continuamos a conversa em inglês com um motorista muito mais afável, e eu pedindo desculpas por não saber francês e ele me perdoando. Boa vontade é tudo. Mas informação atualizada é muito mais.

Ano passado indo visitar Paris pela primeira vez, ainda sem falar francês, levei a regra comigo.
Cheguei na estação de trem e perguntei em francês para as fiscais se elas falavam espanhol ou português. Pensei comigo que se eu oferecesse essas outras línguas era possível que entendessem minha dificuldade. Ambas balançaram a cabeça e responderam:
- English.
E aí caiu a minha cara. 90% de Paris fala inglês agora e com melhor vontade. Eu os entendo. Ser invadido todo santo dia por gente perguntando o básico o tempo todo não é algo fofo, nem fácil. Talvez venha daí a "má-vontade" dos parisienses. Mas tudo muda quando você faz um esforço maior para se adaptar e mostrar respeito.

Enfim, poderia continuar a escrever até fazer um livro com causos de viagens e do quanto todas elas me fizeram uma pessoa mais aberta, menos precoceituosa e mais adaptável a diferentes situações. Elas me fizeram uma melhor mãe, uma melhor amiga, uma melhor professora, uma melhor profissional.

Por isso, se eu puder dar uma sugestão para ser usada SEM moderação depois dessa pandemia é: vai viajar. Se joga, experimenta, se relacione com pessoas diferentes. O que esse vírus nos mostrou claramente é que estamos todos no mesmo barco. E quando a gente visita os aposentos dos outros nesse mesmo barco a gente fica mais empático, mais cheio das habilidades, ou como se diz em inglês: resourceful. A gente entende que a dificuldade do outro é nossa também e o que nos divide se torna muito pequenininho.





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