Meu pai era um fã ardoroso das filosofias do Deepak Chopra. Mesmo sendo católico de carteirinha, ele recebia com bons olhos qualquer jeito de viver que nos tornasse melhores. Como tinha como profissão treinar outros profissionais para se desenvolverem na carreira, tinha que praticar em casa e na vida o que ensinava. Nada dos coachs que vemos pipocar aos montes hoje. O pai fazia parte de uma tribo "treinador raiz", do antigo Ceag, um sistema público que dava suporte para empreendedores, e que virou depois o Sebrae. A missão dele era repassar experiência, conhecimento e aconselhar para que as pessoas tivessem o sucesso no trabalho e muitas vezes na vida.
Essa talvez tenha sido a maior influência dele na minha vida como um todo. Fora toda a carga cristã católica, que sempre levei muito ao pé da letra e dos ensinamentos, ver os outros se desenvolverem sempre esteve entre os meus maiores prazeres. Demora um tempo para a gente entender para o que foi feito. Mas hoje eu posso dizer que ensinar, treinar, encaminhar, comunicar para reunir, estão entre as minhas paixões mais fervorosas. Claro que posso fazer isso em várias outras atividades profissionais e, de certa forma, essa preocupação com os que estão ao redor é constante. Tanto que tenho que ficar me segurando aqui na casa que dividimos com mais 5 alunos, para não dizer para eles como a louça deve ser lavada, os quartos limpos ou a roupa cuidada.
Com o tempo aprendi a fica quieta. Com o tempo aprendi que se o outro quer fazer algo que você vê que vai dar tudo errado e ainda avisou, você tem que respeitar. Com o tempo aprendi que sou mais aprendiz nessa história de tentar ensinar. E foi o tempo que também me ensinou que estamos todos no mesmo barco por isso é um ato de extremo egoísmo e egocentrismo quando investimos nosso tempo para sermos melhores e os outros serem melhores. Porque a verdade é que, como dizia a música, não dá para ser feliz sozinho.
Não dá.
Por que resolvi falar tudo isso?
Porque compramos o segundo carro ontem. Uma tristeza.
Sim, uma tristeza porque mais um carro é contribuir para o desastre ambiental que estamos vivendo. É adicionar mais químicos poluentes na atmosfera. É apostar no individualismo. Mas é também aceitar que falhei como alguém que buscava alternativas para uma vida melhor, principalmente pelo exemplo, como meu pai ensinou.
Eu passei por todas as fases no meu relacionamento com os carros. A que eu pegava o carro do pai escondido, a que sonhava com o meu carro, a que dividia o carro com o marido, a que (burguesíssima) ganhei o carro dos meus pais quando entrei na universidade, a que me fazia diferença a potência ou o tipo de carro que eu tinha, a que apontava que o carro era o must da independência, a que eu usava o meu carro para ensinar os outros a dirigir (queria que fossem todos independentes como eu), a fase em que o carro precisava ser econômico e de fácil manutenção, a que ele precisava ser menos roubável (depois de dois deles desaparecerem), a que eu não via mais o carro como uma extensão minha, mas como um simples instrumento.
Até que vendi o carro. Vendi para não comprar mais outro. Usei o dinheiro para mandar o filho para o programa de intercâmbio e, como não tinha mais que buscar ninguém na escola ou levar para o médico, morando numa cidade com um sistema de transporte decente, eu decidi usar ônibus e táxi.
Um outro mundo se abriu. Aprendi a baixar o meu orgulho e pedir carona. Lidei com gente que me olhava esquisito ou com dó quando eu dizia que não tinha carro. Aprendi a usar uma mochila no lugar das bolsas, que eu colocava na frente do corpo quando estava dentro do ônibus. Aprendi a evitar saias ou sapatos desconfortáveis, porque quando o dia estava bonito eu caminhava. Comecei a andar 3 km para voltar para casa das aulas do flamenco curtindo a noite. Saía direto do trabalho para o bar com os colegas sem me preocupar com quando o estacionamento iria fechar ou se ia beber.
E combinei com os meus pais que usaria o carro deles toda vez que precisasse faze mercado, ajudando a mantê-los com combustível ou ajustes.
Nunca fui assaltada. Aprendi a analisar com cuidado as ruas e lugares por onde ia. E aprendi a receber o cuidado dos outros, quando faziam questão de me levar para casa. Não era mais a independência o que importava, mas dividir, partilhar o taxi as vezes, ou levar todo mundo quando estava com o carro dos meus pais. Saindo um pouco da lógica individualista e com um pouquinho de comunicação e esforço, era possível partilhar os trajetos, flexibilizando um pouco os horários.
Saí do Brasil e vim morar no Maine, no estado menos populoso dos Estados Unidos. Aqui, quem não tem carro sofre e pena muito porque transporte público é centralizado nas cidades maiores e é tão ruim, mas tão ruim de horários, que é usado mais por quem não o usa para trabalhar. Nesse mesmo cenário, imensos estacionamentos, para caminhonetas imensas estão por toda parte.
Marido veio antes e comprou um Prius usado. Carro híbrido, o Prius é um dos mais mancos da categoria, tanto que em um post para ter os conselhos sobre o carro, uma menina recebeu a seguinte mensagem:
- É um carro ótimo, faz de 0 a 60 em três dias...
Piadas a parte, em quatro anos aqui, o Prius vermelho nos serviu muito bem. Morávamos no meio da vila da ilha em que vivíamos então tudo era feito caminhando praticamente. Uma vez por semana um levava a cã na creche de carro. E dias de chuva era possível que um desse carona para o outro. Mas nada muito grave. Para ir ao mercado no município vizinho (que tem ônibus somente duas vezes por semana!!!), para buscar e levar coisas, a partilha do Prius entre marido e eu foi sempre tranquila. Ele me ameaçava: ah, se encontrar trabalho em tal lugar, vamos ter que comprar o segundo carro! E eu resistia bravamente.
Numa viagem que saía de Boston aluguei um carro até o aeroporto. Quando ele foi para a residência artística por um mês ele emprestou uma caminhoneta velha do pai dele. A manobra sempre foi trabalhosa para nos mantermos no único carro, com gente olhando muito torto quando eu dizia que tínhamos somente um carro na família, mas a gente foi ajustando todos os horários, cursos, saída com amigos, até ontem.
Nos mudamos para Brunswick, ao redor de Portland, ironicamente na frente da estação do trem (coraçãozinho aqui para qualquer tipo de trem), e aqui o transporte público também é de hora em hora e muito instável. O trem vem umas 4 vezes por dia e liga outros municípios a Boston, mas não serve para os municípios vizinhos pela opção de horários e preço. Uma tristeza.
Encontrei meu trabalho na cidade vizinha, 15 minutos de carro (15 minutos!!!!!), e estávamos administrando com o marido me levando e buscando, ou quando ele fazia tudo caminhando e eu ia com o carro. Até que ele encontrou o trabalho dele em outro município. Também 20 minutos de onde estamos, mas para o outro lado... Com os horários todos sem poderem combinar, sem rotina, com um dia diferente do outro. Pensei em dividir as idas ao correio (meu trabalho) com uma colega que mora muito perto. Mas os horários dela também não combinam com o meu. E aí não teve jeito, tivemos que comprar outro carro. Foi o pessoal ligar para dizer que o marido podia começar a trabalhar que em dois dias comprarmos um outro carro. Usado, barato, que dava para comprar com o dinheiro que economizamos, sem financiamento. Não é um híbrido, porque os híbridos estavam mais caros. Irônico, tentar salvar o planeta é mais caro.
E foi nessa compra amarga, sem nada da aura e status de conquista que tínhamos no passado, que entendi na prática aquela máxima que realmente estamos no mesmo barco. Todos. E que é possível que muitos de nós ainda tentemos viver um outro tipo de vida, uma melhor, menos invasiva para a Terra, ou ainda ser os off the grid (os novos hippies), mas se não nos juntarmos como comunidade para irmos mudando, a coisa vai patinar por longos anos. Anos que talvez não tenhamos pela frente.
Vim partilhar aqui o gosto amargo de ter descoberto que mesmo fazendo todo o esforço possível para evitar mais poluição e um modo de vida individualista, eu fui vencida. E esse não é um gosto saboroso, não. É bem amargo.
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