Um baú que ensina sobre adaptação

Faz um tempo que estou para contar essa estória, mas a vida fica atropelando a gente, né?
Hoje ela me ressoa muito mais agoureira do que antes...

Estávamos em Bar Harbor, na temporada de 2018, setembro. Sem perspectiva de futuro e rezando toda as noites, de joelhos, para o Inn ser vendido.

Um dia, marido e eu fomos atrás de cadeiras para um dos quartos no município vizinho, Ellsworth. Como vocês devem imaginar, não há muita opção de lojas de móveis nesse lugar onde o vento faz a curva, porque é pequeno, é longe, tem pouca gente morando, enfim, as regras do mercado que conhecemos muito bem sobre oferta e demanda se aplicam aqui também.

Assim, a primeira parada foi num antiquário de beira de estrada. O edifício, um barracão enorme (uns bons mil metros quadrados), tinha três andares entulhados de toda sorte de coisas. Eu sempre me perdia no tempo quando visitava aquele lugar. Um cheiro de mofo misturado com pó denunciava a idade de tudo que estava ali exposto, mas isso nunca me incomodou. Em vez de imaginar as coleções de bactérias que cada objeto guardava eu imaginava a quantidade de história que cada um contaria se pudesse falar. Me encantavam desde engenhocas para resolver tarefas de casa, como um rolo ligado a outro rolo com manivela, que poderia muito bem ser usado para se fazer massas, mas era para espremer as roupas depois de lavadas, numa época em que centrifugar não estava nem nos sonhos das donas de casa.

Pois bem, nesse dia que buscávamos as cadeiras, eu fui passeando devagar para conseguir captar tudo com o melhor olhar. Marido foi direto para os móveis e eu me perdi para fazer o caminho até chegar propriamente nas cadeiras que deveríamos escolher.

Nessa passeada, encontrei uma das minhas paixões: um baú de viagem. Eu amo malas. Faria coleção delas se tivesse espaço e herdei algumas da minha vó que também as colecionava e das minhas tias que viajavam por esse brasilzão de Deus. Mas baú, eu só tenho um que está destinado a mim na casa da minha mãe, de madeira, dos que a gente põe no pé da cama com cobertinhas dentro e que era do meu avô.

Esse que estava no antiquário era um baú mala. Enorme, pesado, com etiquetas de viagens em navios a vapor. O que eu mais adorei eram as gavetas e cabides que ele possuía. Imaginei senhoras de um tempo longínquo que guardavam suas cauçolas ali para viagens de meses pelo mar (à la Titanic). Ou as senhoras que precisavam dos chapéus ou joias para bailes a que eram convidadas em suas viagens... Uma trabalheira imensa, além de ser tudo muito pesado.

Eu já tinha outros planos para aquele baú: seria um móvel na minha casa. É óbvio que eu queria um. Resolvi procurar pelo preço. $300. Depois de recuperar o fôlego do susto, fui atrás do marido e, determinada, falei:
- vou economizar meu dinheiro para ter um baú desses.

Ele não prestou muita atenção, deu de ombros e perguntou sobre as cadeiras e seguimos para casa com um jogo de 4 delas para a kitinete de um dos quartos do hotel.

Mais tarde à noite, conversávamos sobre essa coisa (que se tornou chata para mim) de todo mundo se conhecer pela ilha. Em um dia eu tinha cumprimentado umas 7 pessoas em duas quadras de caminhada. Too much para uma curitibana. Marido então explica que quando ele estava no ensino médio, os professores orientavam a não "ficar" ou " namorar" com gente da ilha. Porque no final das contas todo mundo era parente e era bem possível que você tivesse se apaixonado por um primo de 4º grau. Eu achei aquilo tudo tão insólito... Imagina, você está lá na aula e vem o professor dizendo: olha o gatinho pra quem você pisca pode ser o primo do seu primo... Uiiiiiii.


Algumas semanas depois, eu estava descansando na cozinha do B&B - era meu dia de fazer e servir o café da manhã - e resolvi zapear o Facebook. Eu fazia parte de um grupo em que pessoas vendem e compram coisas usadas na ilha. Aliás, isso é algo muito vantajoso por aqui. Coisas muito boas podem ser compradas por 10% do preço. E as pessoas normalmente procuram na lista antes de comprar novo. No país do desperdício, esse era um respiro de iniciação para um mundo melhor. Nessa zapeada de coisas para vender dei de cara com um baú (!!!!!!!!), idêntico ao que eu tinha visto no antiquário. Meu queixo caiu. Tinha as três gavetas, o cabide! Era verde também e parecia estar em muito melhor condições. E o preço, minha gente: 75 dólares!!!!!!!
Mandei mensagem na hora para quem estava vendendo: Karen. Perguntei quando eu poderia ir ver o baú. Ela disse que estava com a agenda bem flexível. 

Pedi licença da cozinha, corri para casa para ir ao banheiro (lembrem que eu morava no B&B), chegando em casa joguei o fone na frente do marido e disse:

- Liga para essa Karen. Descobre onde ela mora que vamos ver o baú dela hoje ou amanhã. Olha o preço!

Eu não tinha saído do banheiro ainda quando o marido fala do outro lado da porta:

- não preciso nem ligar para ela. Eu sei onde ela mora.

Abri a porta.
-Sabe?
- Sei. E deu um sorriso.
- Como assim sabe?
- Ela é minha prima! Mora em Lamoine! A Karen, mãe do Dakota! Hahahahahahaa

Meu queixo caiu. Aquela história que alguém poderia ser seu parente naquela ilha se transformava quase em prova científica na minha frente. Choquei. Mas não o bastante para me desfocar do objetivo final...

- Ótimo! Então liga para ela. Nós vamos ver o baú amanhã depois do trabalho.

Karen estava em casa, ficou feliz da vida de nos ver e indicou o sótão para a gente subir.

- Eu estava fazendo uma boa limpa nas minhas coisas e comprei esse baú há um ano porque eu tinha uns projetos mas não sei quando vou começar. Então prefiro liberar o espaço.

A voz dela parecia longínqua enquanto eu rodeava o baú e abria ele na vertical. As gavetas, de um papelão grosso revestido por tecido, estavam intactas. Cabides! Os cabides todos ali. Havia também uma caixa de joias que encaixava perfeitamente embaixo dos cabides. Uma aba de tecido ainda caia por cima da área dos cabides cobrindo e protegendo a área.

- Amei! A gente vai levar.

- Ah, que bom. Eu não consigo carregar lá para baixo, vcs acham que conseguem? Só não tranque a fechadura porque não tenho a chave. Já comprei sem a chave.

- ok, sem problema.

Carregamos o baú vazio escada abaixo. Um peso daqueles. Eu só ficava imaginando com um monte de cacarecos dentro como é que aquilo era carregado... Eu, com certeza, usando esse baú, quebraria a regra que a minha mãe uma vez me disse: - faça sempre uma mala que você possa carregar sozinha.

O baú ocupou praticamente todo o porta-malas do carro. Pagamos a prima e voltei feliz da vida para casa.

Colocamos aquela caixa enorme no meio da entrada da casa porque eu queria limpar, desmontar tudinho, e colocar uma essência com cheirinho bom dentro porque é óbvio, estava cheirando a guardado. Manobrei o baú, coloquei de pé, analisei o baita pedaço de couro colocado para carregar dos lados, achei umas iniciais de um viajador do passado, chequei os pezinhos de metal. Eu admirava a conquista. Dizia para mim mesma que a mágica sempre acontecia: eu queria uma coisa, avisava o Universo e voi lá! A coisa ia acontecendo ou se fazia concreta na minha frente. A arrogância começou a crescer. 

Eu pensava: o do antiquário era 300 dólares e era muito pior... E como eu não tinha tempo para desmontar tudo aquela hora encostei as duas partes do grande baú para ocupar menos espaço. 
E continuava a pensar: um quarto do preço. Um quarto e eu consegui o que queria... 

Mexi na fechadura. Dourada, com o verde do couro do baú, fazia todo um destaque. Movi a alavanca para ver como a fechadura funcionava, como entrava na trava e como... CLIQUE. O barulho me deu um arrepio na espinha.  Desejei não ter mexido no baú. Deixasse para o dia da limpeza, né?
A fechadura, quando estava aberta.
Logo depois, veio a vontade de bater com a cabeça na parede. Várias vezes. Óbvio, eu TINHA TRANCADO o baú. E NÃO TINHA A CHAVE.
Aquela bile misturada com arrependimento subia em mim, mas nem perdi tempo. Fui atrás de todOs os clipes que eu tinha na casa. Desmontei alguns tentando abrir a fechadura. Nada.
Encontrei as chaves antigas achadas no B&B. Nenhuma funcionou.
Num impulso de desespero fui até a cozinha do Inn. As mulheres se confraternizavam lá depois de tudo resolvido naquele dia e esperavam os hóspedes chegarem para o check in. 

Minha veia dramática apareceu:
- por favor, vocês todas podem me chamar de idiota? Façam esse favor...

Marilyn, a doce senhora que me ensinou quase tudo, fechou a cara e disse:
- Não! Porque você quer ser chamada de idiota?
- Porque sou uma idiota. 
E contei a história para elas.

Kathie foi até um pote cheio de chaves e me entregou.

- Vai, tenta. De repente uma dessas pode funcionar.

Kim riu de toda a cena:
- My dear, eu tenho uma coleção de chaves que meu pai fazia. Um vidro cheínho delas. Posso te trazer, se você quiser.
- Obrigada. Vou tentar essas e te aviso se não derem certo.

Saí de lá com vontade de chorar. De raiva. Em casa, testei todas as chaves do potinho. Nenhuma encaixou, virou  ou deu certo. Aquele dia fui dormir com um gosto amargo de frustração.

Liguei para a Kim pedindo o grande jarro das chaves e alguns dias depois, com dor nas costas e tudo, ela o trouxe. Devia pensar uns 10 kilos.
Eram 20h. Marido olha para mim e pergunta se vou tentar todas as chaves aquela noite.

- Que dúvida, né?

Sentei no chão e comecei a testar, uma a uma, as chaves do grande vidro. Virava, forçava um pouco e nada. Fui deixando de lado o que era muito grande, muito fora do padrão que nem entraria. E continuei com as pequenas.

Tinha passado por mais ou menos uns 10% das chaves quando ouvi um clique. Forcei a fechadura e nada. Continuei. Umas 10 chaves a frente, quando inclinei para baixo uma das pequenas chaves e girei: CLIQUE!!!!!

- Abriu!!!!! Abriu!!!!!!! Abriu!!!!


O super vidro de chaves e a fechadura finalmente aberta

Eu não tinha chegado no meio do vidro e tinha achado uma chave que abriu a fechadura. Na verdade não era uma chave para aquela fechadura. 
Não era a chave daquela fechadura, mas ela serviu ao propósito necessário naquela noite, abriu a fechadura. Junto dela testei outras três que não era perfeitas faziam as mesmas honras de abrir o baú.
Marido veio correndo com os gritos.

- Achou a chave então?
- Bem, não era exatamente a chave dessa fechadura. Mas abriu.
- Hum, como abriu se não era para essa fechadura?
- Eu inclinei ela para cima. Dei um jeitinho. Olha, essa aqui tem que inclinar pro lado e ela abre também.

No final das contas, mil lições desse episódio:
Arrogância só atrapalha.
Nem sempre a gente vai encontrar a chave certa para alguns problemas. Talvez, com jeitinho, outras chaves-soluções, dão o mesmo resultado. A gente só precisa de adaptação.

Numa ilha, o risco de alguém qualquer ser seu parente é altíssimo!















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