Para que a Terra nos deixe ficar


Este texto estilo “bloguerinha” já está planejado há quase dois anos e ficou aqui, sendo digerido, regurgitado, respirado e engolido de novo. Mas não há momento mais adequado para ele ser parido como esse de Pandemia.
As notícias dessa excepcionalidade histórica, que é um vírus virar a Terra, que foi redonda sempre, de ponta-cabeça, confirmou o que muitos de nós já sabíamos: somos o cancro do planeta.

Finalmente, a olhos nus, percebemos que a natureza se vira muito bem sem a gente, e ficou claro que somos os convidados aqui. Um mês de quarentena, enjaulando uma boa parte dos humanos (alguns ainda teimam em não se isolar) e suas atividades degradantes, nos fez testemunhas de coisas raras como pandas se reproduzindo no zoológico (não acontecia há mais de 10 anos), ninhos de passarinhos em carrosvista do Himalaia sem poluição, animais caminhando livremente no meio das cidades.
Teve gente que disse que a Terra acionou o sistema imunológico e está tentando se livrar da gente. E pode ser bem isso, a natureza se recria e muito rápido. E se a gente não aprender a lição agora, outro vírus virá e a humanidade vai acabar diminuindo gradativamente. É o que dizem os futuristas.

Nesse cenário, a gente pode perceber uma variedade de tipos de humanos. Vai desde o infeliz que caça rinoceronte raro na África se achando o dono do mundo e passa por aquele indivíduo com jatinho particular que caga para a poluição e resolve ir jantar em Paris, só porque estava a fim. Segue por outros desperdiçadores de bens naturais em indústrias e linhas de produção, passa por nós, reles mortais que compramos coisas de que não precisamos em embalagem de plástico e chega nos hippies off grid (1), que constroem suas casas autossuficientes, fazem compostagem e usam energia solar para aquecer a água e a casa. Pois bem, a gente pode perceber que para estar nos extremos dessa ordem tem que ter muito dinheiro. Por isso, a grande maioria do planeta ainda usa muitas coisas com plástico, nem sempre orgânicas porque é muito mais caro, toma refrigerante da garrafa PET e compra roupa chinesa pelo alibaba express, porque é mais barato e tem a comodidade de ser enviada pelo correio, do outro lado do mundo. Pois bem, esse comportamento só não é pior do que o do cara que vai caçar na África, mas esses ainda são poucos em números totais. A grande maioria da humanidade que produz muito lixo é da classe média e pobre. Primeiro, porque somos numerosos. Segundo, porque temos pouco ou algum dinheiro para comprar o alimento industrializado e ir na lanchonete comer um sanduíche. O grupo de pessoas realmente consciente, que mede as consequências do seu consumo mesmo sem condições financeiras é ainda tipo unicórnio. Quase não existe.

Foi nessa reflexão, muito antes de qualquer covid-19 vir chacoalhar nossas estruturas, que eu resolvi, aos poucos, pesquisar e mudar alguns hábitos meus, só meus, porque para mudar o mundo já se falava que é preciso começar pela gente. Pois bem, comecei e continuei com mudanças pequenas, mas constantes e contínuas, e algumas duram já anos. E resolvi escrever sobre isso para partilhar com você que me lê e saber suas ideias e estratégias. Uma coisa é certa: precisamos mudar nosso jeito de nos relacionarmos com a Terra, porque ela já está dando sinais de que vai se livrar da gente muito logo se não nos adaptarmos e pensarmos em comunidade, no todo.

Antes de mais nada, explico minha posição nisso tudo: eu estou bem longe de ser uma pessoa verde, vegana, que abraça árvore e planta a própria comida. Nem vegetariana sou. Estou em construção ainda para, se a Terra quiser me manter aqui, ser uma melhor companheira para ela.


Alimentação
Marido e eu (mais eu) temos um gosto bem eclético para comida, mas marido tem predileção por peixe. Eu gosto de tudo mas não faço questão de carne nenhuma. Então carne é algo que já está se tornando raro na casa. Quando a gente compra, é de produção local, sem hormônios. Na maioria dos dias comemos peixe e frutos do mar, primeiro pela proximidade da casa com o mar, segundo porque é (e isso é consciente) menos esculhambação e uso de água na produção de peixe do que de gado. A gente ainda tem que ficar atento sobre de onde esse peixe vem, se não é de uma espécie exótica que está sendo criada em fazendas marinhas e vai competir com a espécie local. Então, dá uma trabalheira, mas já virou rotina.
Todas as outras compras privilegiam produtos locais, orgânicos (quando não estão pela hora da morte) e menos industrializados. Por mais fácil que seja ir ao mercado onde há milhares de opções de todos os sabores de todas as coisas vindas de todos os lugares do mundo.
Outra coisa que fazemos: a gente cozinha, muito. Fiquei pasma de ouvir colegas daqui dizendo que, com a pandemia, nunca cozinharam tanto. Para nós, é mais do mesmo. Porque comer fora é muito caro, e nem sempre você sabe ao certo o que tem de ingrediente na sua comida, o que pode significar um monte de industrializado.

Higiene pessoal e limpeza

Depois de saber sobre uma ilha flutuante que existe formada pelo plástico/lixo que é jogado no mar por anos, eu comecei a buscar alternativas para todos os plásticos de uso único, como sacola de mercado, os de shampoo, desodorantes, pasta e escova de dentes e potes de produtos de limpeza.
Assim, faz mais de 2 anos que uso shampoo sólido para o cabelo. É como se você estivesse usando o sabão de coco que as avós usavam, mas com requintes de outras essências e outros ingredientes naturais. Há também o condicionador em barra que dura mais de 8 meses para mim porque preciso de um pouquinho só.
Eu até já sei o que você vai falar: ah, mas e o cabelo como fica? O cabelo fica limpo, solto e com volume. No meu caso, é claro. Sugiro que você tome o tempo para testar diferentes shampoos sólidos até achar o que agrada. Leva tempo. Eu uso de alecrim e vario com o de laranja, que são os dois que funcionaram para mim. Comprei de diferentes marcas e prefiro de uma que vende as barras mais barato quando não são tão perfeitas no formato. É pequeno, não faz lambança e dura uma eternidade. Quando acaba, acaba. Sem plástico para jogar fora ou reciclar.
Shampoo, condicionador e sabonente para o rosto

Sabonente artesanal, local



A surpresa foi quando encontrei com a amiga Adriana em um congresso na Costa-Rica em 2018 e vimos que fazíamos o mesmo. Ela tinha shampoo sólido na latinha reutilizada e outra com o sabonete. Ela me contou que quando viaja não precisa despachar a bagagem por não carregar líquidos e leva roupas que não sejam amassáveis e se combinem entre si com vários looks. Resumindo, viaja leve, e isso significa também que o avião está usando menos combustível.
Além disso, trocamos figurinhas sobre depilação. Eu uso uma maquininha de arrancar o pelo e ela um suporte de gilete de metal em que se é possível trocar a lámina. Dessa forma, não há plástico, ou no meu caso, o plástico não é de uso único, serve para durar uma vida.


O kit da Adri: pequeno, sem líquidos, sem plástico.


O que eu percebi com essa avaliação é que não preciso dos quilos de cremes de cabelo, cremes de pontas, leave-in e assemelhados que entopem as prateleiras de banheiro. Boa parte desses produtos usam uma máxima que ensinamos no marketing: criam necessidade para vender mais.

Avalie se você realmente precisa de tudo isso que usa e se pode fazer um esforço de se adaptar com produtos que usem menos recursos para serem produzidos.


Pó para escovar os dentes.

O pote não vaza, mas o com carvão ativado marca a pia do banheiro.


Isso se aplica a desodorante (encontrei um com embalagem de papelão), a sabão para lavar roupa (o em pó na caixa de papelão ainda é melhor do que os que existem aqui nos EUA, que são uma infinidade de jarros de plástico), e a escova de dente (há as de madeira). O desafio pode ser achar uma pasta de dente que esteja em embalagem que não seja de plástico.


Desodorante sem plástico e vegan

Uma barra de ingredientes naturebas que dura uma infinidade.

Achei aqui em formato de pó, naturais (bicarbonato de sódio com outras essências), que vêm em um potinho de papelão. Mas o que tem carvão ativado é preto e faz uma zona na pia do banheiro. Nesse quesito, ainda procuro algo que seja com menos plástico e que não faça uma zona. Talvez a versão sem o carvão.


Copinho de menstruação
Eu fui apresentada ao copinho menstrual há muito mais de 10 anos, quando dava aula de redação publicitária para o curso de administração e fizemos um trabalho de criar campanhas de alguns produtos. Uma aluna veio com uma calça branca e apresentou o copinho de silicone. Fiquei muito surpresa. Uns dois meses mais tarde eu comprei o meu copinho e depois de uns 4 períodos menstruais brigando com o dito, eu contatei o pessoal que o fabricava. Pediram para eu insistir um pouco mais. No período seguinte, finalmente consegui que nada vazasse. Uso o mesmo copinho até hoje e nunca imaginei algo mais confortável e seco para esses dias. Mas o que me motiva mesmo é pensar na quantidade de absorventes que eu não usei e não foram parar em um aterro sanitário.


fonte da imagem: https://www.magazineluiza.com.br/copo-coletor-menstrual-de-silicone-ekological/p/jg1k1hj5dg/cp/cmen/


Carro
Quando eu morava no Brasil e o filho tinha crescido o suficiente, vendi o carro e decidi que iria andar de ônibus. Falei com os meus pais que viviam perto da minha casa que, quando precisasse, usaria o carro deles (havia dois) e contribuiria para o combustível ou manutenção. O choque foi imenso na rotina e na aceitação dessa decisão por outras pessoas. Aprendi a pedir caronas, a andar de táxi e mais tarde de uber. Tentei de bicicleta, mas tive algumas experiências não muito boas que me deixaram com medo.
É uma mudança de lógica necessária: morar perto do trabalho, trabalhar em casa, morar perto da escola das crianças ou que tenha transporte público fácil são escolhas que, quando podem ser feitas, devem levar em conta a poluição, tempo no trânsito entre outros.
Aqui nos EUA sou outro E.T. Maine não tem transporte público, é privado e muito raro. Todo mundo precisa de carro para tudo e é normal que cada um tenha o seu porque, enfim, em uma cultura individualista como essa, pedir carona ou sugerir que alguém desvie o trajeto é muito ofensivo. Você precisa ser independente, sempre. Então, desde que cheguei aqui coloquei como uma das nossas prioridades ter um carro somente, menos poluente (temos um Prius híbrido que, piada, faz de 0 a 60 em 3 dias…) e pequeno (o que é desafiador com a neve). E dá-lhe negociação para quando um precisa e o outro também, mas até hoje temos conseguido um levar o outro, se virar de outras formas, caminhar, usar a bicicleta e pedir caronas. Importa dizer que é um esforço de todos os dias, porque a tendência de buscar o mais cômodo é muito grande.

Reciclagem de resíduos
Reciclagem aqui não é obrigatória como em alguns países da Europa. Lembro da Ana contar que, na Bélgica, se você coloca lixo errado no saco errado eles devolvem para a tua casa.
Morar no país que mais usa recursos naturais, mais produz lixo e ainda assim não tem uma política adequada de reciclagem é bem dolorido. Então, o que você faz? Faz sua parte. Há reciclagem na sua cidade, então você separa e recicla.
Na casa que dividimos com outros residentes não havia reciclagem. Trouxemos uma caixa plástica nossa, buscamos na prefeitura o adesivo de reciclagem e colocamos na caixa. Nos quase 4 meses aqui, conseguimos fazer todo mundo se adaptar e colocar o lixo seco (plástico, papelão, vidro, lata, papel) na caixa lá fora toda terça-feira. Eu tenho hoje uma ideia do que deixou de ir para o aterro ou incinerador nesse tempo. E é isso que me motiva.




Roupa do Brechó e móveis

Eu sempre tive esse preconceito herdado de comprar roupa usada. Aqui, depois de gastar somente 30 dólares em 4 calças, 5 camisas sociais e 3 pares de sapatos, todos em perfeito estado, acabou-se o preconceito. No mesmo lugar onde eu doava as roupas que não usava mais, comprei as que eu precisava. Não tem maneira mais perfeita de dar significado amplo ao reusar, reciclar.
Já em relação aos móveis eu sempre tive uma atração especial pelos antigos e usados. Para mim, eles têm mais qualidade do que os novos que são criados com as obsolescências programadas. Assim, aqui o processo é o mesmo, se não for de doação mesmo porque galera não está usando, a gente compra usado. É barato, e é menos coisas no lixo.


Livro (e-book e usado)
Esse é um costume já desde quando eu cursava o mestrado quando não encontrava os livros pedidos em editoras ou lojas. Virei cliente de carteirinha da Estante Virtual e pouco tempo depois perdi até o pudor/vergonha de presentar com livros usados. É a mesma coisa.
Já em relação ao e-book eu tenho uma relação de ódio e amor. Assim como é lindo carregar o livro no meu computador ou no kindle pra onde for, quando se trata de pesquisa a coisa fica mais complicada. Porque ao fichar o livro você quer folhear, ir e vir, e aí esse formato complica. Mas se é para literatura, é a melhor coisa do planeta. Gigantescos volumes cabem na palma da mão e podem me acompanhar para onde eu for. Vida mais leve. Enfim, tudo para diminuir os rastros que deixamos.

Desafio das novas gerações

Assim como minha mãe se sente desafiada por esses novos costumes para esticar a nossa estada na Terra, e eu tento me adaptar a despeito de tudo que é ofertado ao meu redor, o meu filho, a nova geração, me desafia ainda mais. Ele me lembra que o próximo passo é pensar na pegada de carbono que meu consumo vai deixando na Terra. Isso significa mandar menos cartas ou impressos, comprar local e verduras/frutas da temporada ou de mais perto do que de longe, viajar menos, usar menos o carro.
Já é possível comprarcréditos de carbono, o que significa que você pode levar a vida exatamente do jeito que você leva mas, para tirar a grande culpa de estar entupindo a Terra de pegadas, você envia dinheiro para uma empresa que planta um sem número de árvores para compensar essa sujeirada que você/eu provocamos com o nosso consumo. Na minha visão, isso parece limpar bem a sala e colocar todos os entulhos no quarto.

Não há fórmula decente, adequada, mas há um aviso. A Terra precisa respirar e ela poderá provocar o enjaulamento do ser humano de novo se a gente não entender que já passou da hora de reavaliarmos nosso costume, conforto e modelo altamente exploratório e extrativista de viver.





[1] Nome em inglês que não tem uma boa tradução para o português, mas chama-se de off grid um jeito de viver que é considerado fora do sistema. 

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