Era jantar na virada do ano. 31 de dezembro. Meu sogro perguntou na mesa do jantar:
- o que você tem feito com seu tempo?
E aqui estou eu, sentada na cama do quarto que alugamos em Brunswick, olhando pela janela a neve derretendo lá fora e pensando nesse primeiro dia de 2020, as dezenas de respostas que eu gostaria de ter dado para ele mas que, por saber do processo de recepção comunicacional, me limitei a contar o que ele entenderia ou que pensaria ser plausível.
2019 acabou para mim com um soco no estômago. Para quem já estava cansada de receber tantos nãos em todos os trabalhos para os quais se candidatava, que sonhava mas não via uma nesga de concreta esperança pela frente, para quem já tinha gastado todas as motivações Pollyana para enxergar lições em todos os rebosteios que estavam acontecendo, o golpe de misericórdia veio um pouco antes do Natal.
Desde maio a gente (marido e cã inclusos) sabia que no final do ano não teria mais nem casa nem trabalho em Bar Harbor porque o Inn foi vendido.
Sim, queríamos que o Inn fosse vendido. Dolorosamente, um negócio que estava nas mãos da família do marido há mais de 40 anos, precisava ir. Deveríamos cantar o let it go. Por isso, desde o início do ano, uma carga emocional imensa estava nos rondando. Primeiro o estresse de ter o negócio e todas as rusgas familiares que vinham junto. Tem gente que acha que ter uma pousada que funciona somente de maio a outubro de todos os anos é o trabalho mais fácil de todos. Pois eu sou a primeira a jogar uma cabeça de alface podre na cabeça de quem ousar falar algo assim na minha frente sem conhecimento de causa.
Cuidar de uma pousada (aqui é Bed & Breakfast) de 20 quartos, todos diferentes entre si, localizados em três edifícios na mesma propriedade, pensando em limpeza, café da manhã, manutenção e satisfação de hóspede (que nunca estão satisfeitos) é trabalho de 24/7. Não tem férias, nem escapadinha sem ter que penalizar o negócio e sua reputação. Você cria raiz e fica na propriedade ad eternum. Se não ficar, perde dinheiro. Esse bem suado, de uma temporada inteira.
Pois bem, saímos do Brasil para ir ajudar a família a lidar com esse hipopótamo no meio da loja de cristais. Como se não bastasse todo o processo de administração, o drama familiar da vó ter deixado a pousada com um monte de dívidas e coisas mal explicadas para três filhos que nunca escolheram lidar com esse tipo de negócio e não eram tão chegados na mãe e nas suas excêntricas decisões, foi de mandar para o hospital por algumas vezes o sogro e a madrasta-sogra. Reclamações, então, eram diuturnas. Todo santo encontro ou ligação telefônica era uma romaria: de que não davam conta, de que tudo estava errado, de que era problema atrás de problema, que nunca tinham pedido por isso e bla, bla bla.
Marido e eu também não nos víamos domando esse hipopótamo. Tivemos várias conversas para saber se talvez fosse o caso da gente assumir, comprar o negócio deles, etc. Todas as vezes que conversávamos sobre essa possibilidade a gente chegava à conclusão que ia ser uma prisão para ambos. Nenhum de nós sonhou na vida em ter um hotel ou algo que o valha. Daí que assumir um sonho que era dos outros, da avó, nesse caso, era suicídio, divórcio ou uma vida miserável pela frente.
Então o que a gente fez com toda a força da nossa fé? Torceu e pediu para que alguém comprasse o B&B. Com toda força de intenção, com toda energia disponível. Pelo menos de minha parte.
Eu não tinha ligação emocional com o hotel, e via algumas vezes o marido se encostar pensando se levar uma vida dessas bucólica/estressante talvez não pudesse ser para a vida toda. Mas ele mostrava ter certeza que não queria para ele.
Pois bem, há aquele ditado que a gente precisa cuidar com o que pede. Porque pode ser atendido.
O B&B foi, então, vendido e a gente ficou meio sem chão, pensando se sai, se fica, o que faz. Os dois trabalhavam no hotel, moravam no hotel. Aquela história que dizem: não coloque todos os ovos no mesmo cesto.
Tínhamos alguns cenários na nossa frente. Os novos donos iam pedir ajuda para lidar com o hipopótamo e a gente ficava até o final da estação, já que sendo da Califórnia eles não tinham ideia do porquê desligar e esvaziar a água do edifício mais antigo era muito importante no inverno. Há todo um conjunto de pequenos detalhes em se viver em um estado que fica praticamente congelado por uns 5 meses que em uma temporada só não víamos eles aprendendo, mas enfim, combinamos que era o que ofereceríamos. Aceitaram. Pediram que ficássemos.
Mas eu, que não nasci ontem, já pensei que como bom empresário tentando fazer um negócio ter sucesso, o casal iria aos poucos se desfazer de mim e do marido. Era natural, oras. Representávamos o velho, a outra família e a ideia era passar o bastão mesmo. Marido demorou anos para entender com a urgência que a coisa merece.
Então comecei o griteiro movida pela minha ansiedade dizendo para ele procurar outro emprego durante a estação. Avisei que eles não dariam trabalho full-time - porque eles iriam trabalhar no que seria nossos postos, o que fazia sentido - e que era bom a gente fazer o nosso pé de meia para quando a gente ficasse sem casa e trabalho. No fundo não tínhamos perspectiva alguma. Tínhamos alguns planos, mas nada concreto em lugar algum. Um seria eu finalmente encontrar uma posição em alguma universidade e a família toda iria para esse lugar. Outro seria irmos para a Europa de uma vez, porque a gente já entendeu que ir para lá vai ser um jeito de nós dois termos o que queremos, segurança e latinidade (pra explicar de um jeito bem resumido). A terceira e última opção seria nos mudarmos para um pouco mais ao sul do estado, perto da maior cidade, Portland, e desenvolver ambas as vidas, ele na arte e eu na comunicação/educação de alguma forma.
Depois do griteiro, marido achou dois outros empregos paralelos ao hotel e eu tinha a loja na qual eu trabalhava quando não estava limpando o hotel. Conseguimos, pelo menos, guardar um pouco de dinheiro.
Pois bem, depois de uma temporada traumatizante com os novos donos com os quais tivemos um choque que não era só cultural, mas ambiental, metodológico e ético, o que me rendeu uma outra inflamação nas costas depois de 20 anos que tive problemas da sacro-ilíaca (claro que essa dor não veio sem uma grande aprendizagem sobre eu precisar, mais do que nunca, dizer não) e uma alergia na pálpebra dos olhos, que no final das contas era uma somatização do que "eu não queria ver". No fundo eu não queria ver o B&B sendo tratado daquele jeito que eles estavam tratando. Mas também não queria ver essa coisa nebulosa que estava se tornando nosso futuro. Não tínhamos ideia mesmo do que iria acontecer e foi impossível segurar a ansiedade. Postulei para infinitos trabalhos em universidades e nada saía com resultados positivos.
Chegou novembro, fechamos parcialmente o B&B como era feito todos os anos e os donos voltaram para a Califórnia com as perguntas básicas: se passaríamos o inverno cuidando do hotel para eles. Eu não aguentava mais. Definimos, sem ter nada certo, que nossa data de saída seria 5 de janeiro de 2020.
Nesse meio tempo tínhamos uma viagem de duas semanas para o Panamá para conhecer a neta. Dane-se, ela era infinitamente mais importante do que o que eu faria para conseguir dinheiro o resto da vida ou pelo menos pelos próximos anos.
Era novembro, marido ainda tinha um dos trabalhos em um restaurante e ele acabou conseguindo outro na área de Portland. Decidiu viajar as 3 horas, trabalhar uns 3 dias por semana ficando em casa de amigos e construir uma reputação e histórico de pagamentos para podermos ver se conseguiríamos financiar uma casa. Alugueis estavam nas alturas nas cidades ao redor de Portland e eu fiz as contas que poderíamos comprar algo. Ia ser mais barato, simplesmente.
Mas é óbvio que nada é assim tão fofo e fácil. Eu precisava ter um trabalho também. E eu precisava então me mudar para perto de Portland já que a cã não poderia ficar sozinha. Era toda uma sessão e nem todo hotel ou aluguel aceita família com cã.
Apliquei/postulei para algumas posições e acabei descendo com o marido de carro para falar com alguns empregadores. Ele, marido, não estava nada confortável. Começou a ladainha de reclamações que durou uns 3 meses em ritmo constante.
Depois da viagem ao Panamá, voltamos muito mais agressivos na busca de trabalhos, mas com casa ainda em Bar Harbor. Marido continuou trabalhando no restaurante em Brunswick, e nisso o gerente o hotel - onde o restaurante estava funcionando - disse a ele que ele iria me contratar para full-time como front-desk na próxima segunda-feira. Próxima segunda-feira era dia 23 de dezembro e a semana do Natal. Pensei comigo: - perfeito! Eu tenho trabalho fixo, na indústria (hospitalidade) que já estávamos. Eram as coisas se ajeitando.
Nesse momento a necessidade era achar um lugar para ficarmos todos já que não tinha nexo eu ficar indo e vindo e ficar de hóspede também nos amigos e a Pandora precisava de um lugar. Corri atrás de alugueis curtos, já que o plano era comprar uma casa, não fazia sentindo pagarmos um aluguel caríssimo para depois mudarmos de novo. Assim, encontrei um quarto para alugar numa casa de 11 quartos, no centro de Brunswick onde eu poderia ir caminhando para o trabalho. E aceitavam cã!!!
Marido surtou. Disse que não teríamos espaço, não tem TV, não isso, não aquilo.
O estúdio de arte no antigo prédio da tecelagem já estava garantido para as artes dele. Então repliquei:
- o quarto é só para dormir. Eu vou trabalhar o dia inteiro, você se não estiver no estúdio vai estar trabalhando. Então será o quarto porque não vou pagar horrores das nossas economias para ter mais espaço que não vamos usar.
O plano era perfeito. Ficaríamos trabalhando os dois, Pandora tinha um lugar seguro para ficar, juntaríamos o dinheiro e a certeza de poder comprar uma casa (para o banco) e logo logo poderíamos nos mudar para a nossa casa. Eu só esqueci que a gente não controla coisa nenhuma.
Fui no brechó de Bar Harbor com a minha amiga conselheira, comprei umas 5 camisas e umas 4 calças sociais, mais uns 3 pares de sapatos sociais (para quem ficou 3 anos andando de tênis era uma mudança e tanto) e já estava preparada para ser uma front-desk perfeita. Descemos com o carro cheio o suficiente (cama da cã e tudo o mais) para ficar no hotel onde iríamos trabalhar (porque os papeis para o quarto ainda não estavam prontos), paramos em Camden para almoçar com um casal de amigos queridos e chegamos em Brunswick. Pandora adorou o hotel e a cama king size. Eu olhei aquele hall todo decorado e já fiquei feliz de saber que eu ia trabalhar ali.
No dia seguinte me arrumei com roupas formais, desci para o café da manhã e o gerente veio conversar dizendo que o restaurante estaria fechado aquela semana. Semana de Natal?
- É, não temos staff suficiente para trabalhar na cozinha.
Bem, os medos e reclamações do marido em relação a com quem a Pandora ficaria já se resolveram ali... Eu trabalharia e ele não, logo teria mais tempo para ir ao estúdio e ficar com a cã.
O gerente ainda avisou que havia algum problema acontecendo em termos corporativos porque o staff tem recebido o salário com atraso. Nessa altura do campeonato, eu já estava aceitando tudo, teria um emprego pra mostrar para o banco e pronto. Respondi:
- Não tem problema. Viemos de um B&B em que as coisas estavam ainda não tão certas e sobrevivemos.
- Então vamos ao treinamento.
O gerente então me pediu os papeis assinados, copias dos documentos, me sentou no computador para ver o vídeo treinamento do software das reservas. Tudo lindo. Cinco minutos depois, ele chega e diz:
- Nivea, desculpa, o corporativo acaba de me informar que não posso te contratar. Eu estou muito sem jeito. Me desculpe.
E saiu.
Foi bem ali que a Nivea matou a Polyana. Fazia dois meses que eu estava listando tudo que ia dar certo para o pessimista do marido. Mas ali, não teve jeito, Polyana morreu. Eu quase comecei a rir de nervoso. Mas decidi ir atrás do marido que caminhava a cã para avisar que eu não tinha mais trabalho. Nem eu, nem ele. De certo, a gente só tinha o carro e nós mesmos. Porque nem sabíamos se poderíamos entrar no quarto que iríamos alugar. Eu ainda pensava que poderíamos ficar mais uma noite no hotel.
- Não será possível, disse o gerente se recolhendo ao seu cubículo quando voltamos.
Ótimo. Agora só tínhamos o carro. E a gente. E a cã.
Um amargor começou a subir pela garganta. Imaginei que é nessas horas que os humanos começam a gritar com essa entidade invisível que acham que existe e chamam de Deus. Quando comecei pensar em dar esse grito, o telefone tocou. Era a mulher do quarto dizendo que poderíamos entrar.
- Good timing, disse o marido.
Fomos nos ambientar no nosso novo pequenino espaço. Tudo muito pequeno. Ajeita aqui, arruma acolá e a primeira noite foi um inferno. Cama pequena, com mola. Um vira pro lado, o outro sai pulando. Horrível.
Em dois dias era Natal. Nada para comemorar. Decidi ir à missa. Pelo menos haviam igrejas perto.
Sentei no cantinho da igreja para que ninguém olhasse para a raiva que eu carregava dentro de mim. Era uma raiva de filha para pai. Como assim você não consegue me ajudar?
O sermão, do padre desconhecido, foi um tapa na cara.
- Vocês lembram como Jesus nasceu? Onde? Numa manjedoura, né? Vocês sabem como é uma manjedoura? Sim, animais, sujo, cheira mal. O nascimento do salvador não foi um cartão da Hallmark. Não foi fofinho. Foi doído, sujo, improvisado.
O recado é um só: todo mundo tem problemas. Inclusive o Salvador do mundo teve problemas desde o nascimento. Hoje, nesse momento, há gente com toda sorte de desafios para enfrentar. Diferentes problemas, muito que levam ao desespero. E Deus sabe deles todos e só te pede uma coisa: não desista. Não desista. Continue firme. Teu momento vai chegar.
A essa hora eu só soluçava. Profundamente. Agradeci as grandes colunas da igreja e a quase não tão boa luz que escondiam minha cara inchada e minha tristeza profunda. Saí antes que a missa acabasse. A última coisa que eu queria era dar Feliz Natal alegremente para gente que nunca vi na vida, mas que poderiam no futuro ser meus vizinhos.
De lá fomos para a casa dos sogros. Eu cinza por dentro. Ficamos um tempo e eu pedi para voltar para casa. Tinha coisa para fazer.
Nos dias seguintes pedi para o marido buscar em Bar Harbor uma coberta de lã de carneiro que minha vó tinha feito para mim e transformei em colchão no chão. Pelo menos dormir, eu ia dormir direito já que o resto tudo estava fora do lugar. Então assim estávamos. A cama de mola, outra cama de lã no chão e a cama da Pandora. Um acampamento. Ainda assim eu sabia que nem chegava perto do que muitas famílias passam a vida toda. A gente estava limpo, e no quentinho. Numa casa decente, com água encanada e silêncio (os roommates eram gente finíssima). Nada parecido com uma manjedoura.
Nos dias que se seguiram juntei meus cacos, ainda em meio à uma névoa cinza do meu humor misturado com o céu escuro de inverno lá fora e juntei as energias para postular para trabalhos. Ué, o sermão disse para seguir, não é?
E aí veio a pergunta: o que você tem feito com o seu tempo? A resposta seria: estava tentando ressuscitar Polyana. Esse tempo todo.
- o que você tem feito com seu tempo?
E aqui estou eu, sentada na cama do quarto que alugamos em Brunswick, olhando pela janela a neve derretendo lá fora e pensando nesse primeiro dia de 2020, as dezenas de respostas que eu gostaria de ter dado para ele mas que, por saber do processo de recepção comunicacional, me limitei a contar o que ele entenderia ou que pensaria ser plausível.
2019 acabou para mim com um soco no estômago. Para quem já estava cansada de receber tantos nãos em todos os trabalhos para os quais se candidatava, que sonhava mas não via uma nesga de concreta esperança pela frente, para quem já tinha gastado todas as motivações Pollyana para enxergar lições em todos os rebosteios que estavam acontecendo, o golpe de misericórdia veio um pouco antes do Natal.
Desde maio a gente (marido e cã inclusos) sabia que no final do ano não teria mais nem casa nem trabalho em Bar Harbor porque o Inn foi vendido.
Sim, queríamos que o Inn fosse vendido. Dolorosamente, um negócio que estava nas mãos da família do marido há mais de 40 anos, precisava ir. Deveríamos cantar o let it go. Por isso, desde o início do ano, uma carga emocional imensa estava nos rondando. Primeiro o estresse de ter o negócio e todas as rusgas familiares que vinham junto. Tem gente que acha que ter uma pousada que funciona somente de maio a outubro de todos os anos é o trabalho mais fácil de todos. Pois eu sou a primeira a jogar uma cabeça de alface podre na cabeça de quem ousar falar algo assim na minha frente sem conhecimento de causa.
Cuidar de uma pousada (aqui é Bed & Breakfast) de 20 quartos, todos diferentes entre si, localizados em três edifícios na mesma propriedade, pensando em limpeza, café da manhã, manutenção e satisfação de hóspede (que nunca estão satisfeitos) é trabalho de 24/7. Não tem férias, nem escapadinha sem ter que penalizar o negócio e sua reputação. Você cria raiz e fica na propriedade ad eternum. Se não ficar, perde dinheiro. Esse bem suado, de uma temporada inteira.
Pois bem, saímos do Brasil para ir ajudar a família a lidar com esse hipopótamo no meio da loja de cristais. Como se não bastasse todo o processo de administração, o drama familiar da vó ter deixado a pousada com um monte de dívidas e coisas mal explicadas para três filhos que nunca escolheram lidar com esse tipo de negócio e não eram tão chegados na mãe e nas suas excêntricas decisões, foi de mandar para o hospital por algumas vezes o sogro e a madrasta-sogra. Reclamações, então, eram diuturnas. Todo santo encontro ou ligação telefônica era uma romaria: de que não davam conta, de que tudo estava errado, de que era problema atrás de problema, que nunca tinham pedido por isso e bla, bla bla.
Marido e eu também não nos víamos domando esse hipopótamo. Tivemos várias conversas para saber se talvez fosse o caso da gente assumir, comprar o negócio deles, etc. Todas as vezes que conversávamos sobre essa possibilidade a gente chegava à conclusão que ia ser uma prisão para ambos. Nenhum de nós sonhou na vida em ter um hotel ou algo que o valha. Daí que assumir um sonho que era dos outros, da avó, nesse caso, era suicídio, divórcio ou uma vida miserável pela frente.
Então o que a gente fez com toda a força da nossa fé? Torceu e pediu para que alguém comprasse o B&B. Com toda força de intenção, com toda energia disponível. Pelo menos de minha parte.
Eu não tinha ligação emocional com o hotel, e via algumas vezes o marido se encostar pensando se levar uma vida dessas bucólica/estressante talvez não pudesse ser para a vida toda. Mas ele mostrava ter certeza que não queria para ele.
Pois bem, há aquele ditado que a gente precisa cuidar com o que pede. Porque pode ser atendido.
O B&B foi, então, vendido e a gente ficou meio sem chão, pensando se sai, se fica, o que faz. Os dois trabalhavam no hotel, moravam no hotel. Aquela história que dizem: não coloque todos os ovos no mesmo cesto.
Tínhamos alguns cenários na nossa frente. Os novos donos iam pedir ajuda para lidar com o hipopótamo e a gente ficava até o final da estação, já que sendo da Califórnia eles não tinham ideia do porquê desligar e esvaziar a água do edifício mais antigo era muito importante no inverno. Há todo um conjunto de pequenos detalhes em se viver em um estado que fica praticamente congelado por uns 5 meses que em uma temporada só não víamos eles aprendendo, mas enfim, combinamos que era o que ofereceríamos. Aceitaram. Pediram que ficássemos.
Mas eu, que não nasci ontem, já pensei que como bom empresário tentando fazer um negócio ter sucesso, o casal iria aos poucos se desfazer de mim e do marido. Era natural, oras. Representávamos o velho, a outra família e a ideia era passar o bastão mesmo. Marido demorou anos para entender com a urgência que a coisa merece.
Então comecei o griteiro movida pela minha ansiedade dizendo para ele procurar outro emprego durante a estação. Avisei que eles não dariam trabalho full-time - porque eles iriam trabalhar no que seria nossos postos, o que fazia sentido - e que era bom a gente fazer o nosso pé de meia para quando a gente ficasse sem casa e trabalho. No fundo não tínhamos perspectiva alguma. Tínhamos alguns planos, mas nada concreto em lugar algum. Um seria eu finalmente encontrar uma posição em alguma universidade e a família toda iria para esse lugar. Outro seria irmos para a Europa de uma vez, porque a gente já entendeu que ir para lá vai ser um jeito de nós dois termos o que queremos, segurança e latinidade (pra explicar de um jeito bem resumido). A terceira e última opção seria nos mudarmos para um pouco mais ao sul do estado, perto da maior cidade, Portland, e desenvolver ambas as vidas, ele na arte e eu na comunicação/educação de alguma forma.
Depois do griteiro, marido achou dois outros empregos paralelos ao hotel e eu tinha a loja na qual eu trabalhava quando não estava limpando o hotel. Conseguimos, pelo menos, guardar um pouco de dinheiro.
Pois bem, depois de uma temporada traumatizante com os novos donos com os quais tivemos um choque que não era só cultural, mas ambiental, metodológico e ético, o que me rendeu uma outra inflamação nas costas depois de 20 anos que tive problemas da sacro-ilíaca (claro que essa dor não veio sem uma grande aprendizagem sobre eu precisar, mais do que nunca, dizer não) e uma alergia na pálpebra dos olhos, que no final das contas era uma somatização do que "eu não queria ver". No fundo eu não queria ver o B&B sendo tratado daquele jeito que eles estavam tratando. Mas também não queria ver essa coisa nebulosa que estava se tornando nosso futuro. Não tínhamos ideia mesmo do que iria acontecer e foi impossível segurar a ansiedade. Postulei para infinitos trabalhos em universidades e nada saía com resultados positivos.
Chegou novembro, fechamos parcialmente o B&B como era feito todos os anos e os donos voltaram para a Califórnia com as perguntas básicas: se passaríamos o inverno cuidando do hotel para eles. Eu não aguentava mais. Definimos, sem ter nada certo, que nossa data de saída seria 5 de janeiro de 2020.
Nesse meio tempo tínhamos uma viagem de duas semanas para o Panamá para conhecer a neta. Dane-se, ela era infinitamente mais importante do que o que eu faria para conseguir dinheiro o resto da vida ou pelo menos pelos próximos anos.
Era novembro, marido ainda tinha um dos trabalhos em um restaurante e ele acabou conseguindo outro na área de Portland. Decidiu viajar as 3 horas, trabalhar uns 3 dias por semana ficando em casa de amigos e construir uma reputação e histórico de pagamentos para podermos ver se conseguiríamos financiar uma casa. Alugueis estavam nas alturas nas cidades ao redor de Portland e eu fiz as contas que poderíamos comprar algo. Ia ser mais barato, simplesmente.
Mas é óbvio que nada é assim tão fofo e fácil. Eu precisava ter um trabalho também. E eu precisava então me mudar para perto de Portland já que a cã não poderia ficar sozinha. Era toda uma sessão e nem todo hotel ou aluguel aceita família com cã.
Apliquei/postulei para algumas posições e acabei descendo com o marido de carro para falar com alguns empregadores. Ele, marido, não estava nada confortável. Começou a ladainha de reclamações que durou uns 3 meses em ritmo constante.
Depois da viagem ao Panamá, voltamos muito mais agressivos na busca de trabalhos, mas com casa ainda em Bar Harbor. Marido continuou trabalhando no restaurante em Brunswick, e nisso o gerente o hotel - onde o restaurante estava funcionando - disse a ele que ele iria me contratar para full-time como front-desk na próxima segunda-feira. Próxima segunda-feira era dia 23 de dezembro e a semana do Natal. Pensei comigo: - perfeito! Eu tenho trabalho fixo, na indústria (hospitalidade) que já estávamos. Eram as coisas se ajeitando.
Nesse momento a necessidade era achar um lugar para ficarmos todos já que não tinha nexo eu ficar indo e vindo e ficar de hóspede também nos amigos e a Pandora precisava de um lugar. Corri atrás de alugueis curtos, já que o plano era comprar uma casa, não fazia sentindo pagarmos um aluguel caríssimo para depois mudarmos de novo. Assim, encontrei um quarto para alugar numa casa de 11 quartos, no centro de Brunswick onde eu poderia ir caminhando para o trabalho. E aceitavam cã!!!
Marido surtou. Disse que não teríamos espaço, não tem TV, não isso, não aquilo.
O estúdio de arte no antigo prédio da tecelagem já estava garantido para as artes dele. Então repliquei:
- o quarto é só para dormir. Eu vou trabalhar o dia inteiro, você se não estiver no estúdio vai estar trabalhando. Então será o quarto porque não vou pagar horrores das nossas economias para ter mais espaço que não vamos usar.
O plano era perfeito. Ficaríamos trabalhando os dois, Pandora tinha um lugar seguro para ficar, juntaríamos o dinheiro e a certeza de poder comprar uma casa (para o banco) e logo logo poderíamos nos mudar para a nossa casa. Eu só esqueci que a gente não controla coisa nenhuma.
Fui no brechó de Bar Harbor com a minha amiga conselheira, comprei umas 5 camisas e umas 4 calças sociais, mais uns 3 pares de sapatos sociais (para quem ficou 3 anos andando de tênis era uma mudança e tanto) e já estava preparada para ser uma front-desk perfeita. Descemos com o carro cheio o suficiente (cama da cã e tudo o mais) para ficar no hotel onde iríamos trabalhar (porque os papeis para o quarto ainda não estavam prontos), paramos em Camden para almoçar com um casal de amigos queridos e chegamos em Brunswick. Pandora adorou o hotel e a cama king size. Eu olhei aquele hall todo decorado e já fiquei feliz de saber que eu ia trabalhar ali.
No dia seguinte me arrumei com roupas formais, desci para o café da manhã e o gerente veio conversar dizendo que o restaurante estaria fechado aquela semana. Semana de Natal?
- É, não temos staff suficiente para trabalhar na cozinha.
Bem, os medos e reclamações do marido em relação a com quem a Pandora ficaria já se resolveram ali... Eu trabalharia e ele não, logo teria mais tempo para ir ao estúdio e ficar com a cã.
O gerente ainda avisou que havia algum problema acontecendo em termos corporativos porque o staff tem recebido o salário com atraso. Nessa altura do campeonato, eu já estava aceitando tudo, teria um emprego pra mostrar para o banco e pronto. Respondi:
- Não tem problema. Viemos de um B&B em que as coisas estavam ainda não tão certas e sobrevivemos.
- Então vamos ao treinamento.
O gerente então me pediu os papeis assinados, copias dos documentos, me sentou no computador para ver o vídeo treinamento do software das reservas. Tudo lindo. Cinco minutos depois, ele chega e diz:
- Nivea, desculpa, o corporativo acaba de me informar que não posso te contratar. Eu estou muito sem jeito. Me desculpe.
E saiu.
Foi bem ali que a Nivea matou a Polyana. Fazia dois meses que eu estava listando tudo que ia dar certo para o pessimista do marido. Mas ali, não teve jeito, Polyana morreu. Eu quase comecei a rir de nervoso. Mas decidi ir atrás do marido que caminhava a cã para avisar que eu não tinha mais trabalho. Nem eu, nem ele. De certo, a gente só tinha o carro e nós mesmos. Porque nem sabíamos se poderíamos entrar no quarto que iríamos alugar. Eu ainda pensava que poderíamos ficar mais uma noite no hotel.
- Não será possível, disse o gerente se recolhendo ao seu cubículo quando voltamos.
Ótimo. Agora só tínhamos o carro. E a gente. E a cã.
Um amargor começou a subir pela garganta. Imaginei que é nessas horas que os humanos começam a gritar com essa entidade invisível que acham que existe e chamam de Deus. Quando comecei pensar em dar esse grito, o telefone tocou. Era a mulher do quarto dizendo que poderíamos entrar.
- Good timing, disse o marido.
Fomos nos ambientar no nosso novo pequenino espaço. Tudo muito pequeno. Ajeita aqui, arruma acolá e a primeira noite foi um inferno. Cama pequena, com mola. Um vira pro lado, o outro sai pulando. Horrível.
Em dois dias era Natal. Nada para comemorar. Decidi ir à missa. Pelo menos haviam igrejas perto.
Sentei no cantinho da igreja para que ninguém olhasse para a raiva que eu carregava dentro de mim. Era uma raiva de filha para pai. Como assim você não consegue me ajudar?
O sermão, do padre desconhecido, foi um tapa na cara.
- Vocês lembram como Jesus nasceu? Onde? Numa manjedoura, né? Vocês sabem como é uma manjedoura? Sim, animais, sujo, cheira mal. O nascimento do salvador não foi um cartão da Hallmark. Não foi fofinho. Foi doído, sujo, improvisado.
O recado é um só: todo mundo tem problemas. Inclusive o Salvador do mundo teve problemas desde o nascimento. Hoje, nesse momento, há gente com toda sorte de desafios para enfrentar. Diferentes problemas, muito que levam ao desespero. E Deus sabe deles todos e só te pede uma coisa: não desista. Não desista. Continue firme. Teu momento vai chegar.
A essa hora eu só soluçava. Profundamente. Agradeci as grandes colunas da igreja e a quase não tão boa luz que escondiam minha cara inchada e minha tristeza profunda. Saí antes que a missa acabasse. A última coisa que eu queria era dar Feliz Natal alegremente para gente que nunca vi na vida, mas que poderiam no futuro ser meus vizinhos.
De lá fomos para a casa dos sogros. Eu cinza por dentro. Ficamos um tempo e eu pedi para voltar para casa. Tinha coisa para fazer.
Nos dias seguintes pedi para o marido buscar em Bar Harbor uma coberta de lã de carneiro que minha vó tinha feito para mim e transformei em colchão no chão. Pelo menos dormir, eu ia dormir direito já que o resto tudo estava fora do lugar. Então assim estávamos. A cama de mola, outra cama de lã no chão e a cama da Pandora. Um acampamento. Ainda assim eu sabia que nem chegava perto do que muitas famílias passam a vida toda. A gente estava limpo, e no quentinho. Numa casa decente, com água encanada e silêncio (os roommates eram gente finíssima). Nada parecido com uma manjedoura.
Nos dias que se seguiram juntei meus cacos, ainda em meio à uma névoa cinza do meu humor misturado com o céu escuro de inverno lá fora e juntei as energias para postular para trabalhos. Ué, o sermão disse para seguir, não é?
E aí veio a pergunta: o que você tem feito com o seu tempo? A resposta seria: estava tentando ressuscitar Polyana. Esse tempo todo.
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