Eu já tinha postulado para todo tipo de serviço pelos sites de busca de emprego aqui. Todos aqui na redondeza. Fiz teste de personalidade online para 3 deles, gastei quase uma hora em cada um. Teste de velocidade de digitação em inglês. Consegui o mínimo. Preenchi milhares de modelos de currículos que mesmo depois de você fazer upload do seu, pediam para que fossem feitos em outro padrão.
Segui o conselho do roommate que me indicou para uma agência de empregos. Se chamava de staffing e 90% dos trabalhos disponíveis eram os tais temporários. Prometiam que muitos eram o temporários-para-contratar ou temp to hire como dizem aqui. Eu sabia que era marketing. Assim mesmo, quando o moço da agência me ligou para saber se eu queria que ele mandasse meu currículo para um escritório de advogados, eu disse que sim. Nunca se sabe, né?
Um dia depois, ele me liga dizendo que queriam me entrevistar para a vaga de "paralegal". O nome é chique, mas a posição é tipo "estagiário de Direito" ou "auxiliar de processos".
Fui meio ressabiada. Depois que a gente sai da área de conforto, daquela que você domina a língua, o conhecimento, as minúcias do processo, você acaba perdendo um pouco a noção do que sabe e do que não sabe. Na verdade, depois de 3 anos afastada do que eu sempre soube, do que fiz a minha vida inteira, eu já não sabia nem quem eu era. Não sabia até onde eu poderia dar conta, em qualquer trabalho, porque simplesmente eu não sabia do que se tratava cada uma das funções para as quais eu estava aplicando.
Uma que apliquei, por exemplo, era para serviço ao consumidor por email. Era algo que eu imaginava que tinha uma certa noção de conseguir desempenhar e, se tivesse qualquer problema com a língua, eu estava em frente ao computador e poderia pesquisar. Pois fui rejeitada sem entrevista. Sabe por quê? Porque o importante era a velocidade da digitação... E em inglês eu era o mínimo na velocidade. Fiquei muito puta. E pensei: fodam-se todos que preferem máquinas digitadoras do que seres pensantes. Eu pensava, oras. Digitar rápido estava em uma das últimas prioridades da minha vida.
E foi nesse humor que fui para a entrevista. Dois advogados super gente boa me explicaram que eu ia trabalhar com subrogation, que é quando as empresas de seguro de carro (principalmente) pagam seus clientes mas daí vão atrás para cobrar do culpado.
- Bah, elas nunca perdem... (escapou o comentário-pensamento crítico que não deveria ter escapado...)
O advogado concordou:
- Sim, nunca PERDEMOS.
Perguntaram da minha saga, contei; perguntaram o que uma PhD ia querer com uma posição tão inicial como de Paralegal, eu menti dizendo que estava querendo outros ares, porque cansei da academia (o que era uma verdade parcial). Enfim, perguntei sobre como seria o trabalho e eles falaram que eu iria tirar de letra. Duvidei. Eles disseram que a gerente tinha um jeito de treinar que era bem certinho e que não ia ter erro... Disseram ainda que o escritório está em franco crescimento, que estão sempre ampliando, que é a segunda leva de pessoas que estão contratando em dois meses porque não estavam dando conta. E eu poderia subir na carreira e me tornar assistente dos advogados!
Uau! Pensei comigo: quando foi na minha vida que eu almejei trabalhar com processos legais? E é claro que imaginei "dona vida" gargalhando às minhas custas. Saí do escritório sem nenhuma esperança, porque eu já tinha passado por outras entrevistas assim, em que tudo é rosas na hora de conversar e que depois não deram em nada.
Um dia depois, Jeremy, da agência me liga. Me queriam! Um frio na espinha desceu e subiu. E agora? Será que é isso que eu quero fazer? Será que ser temporário vai me permitir comprar uma casa? Será que vou saber fazer o que devia ser feito?
Como dizem num português bem chulo: o que era um peido para quem estava cagada? Fui, né?
Assinei os contratos, e lá fui eu com o meu almoço na marmita no primeiro dia de trabalho.
Esperei sentadinha na recepção e, de repente, Melina senta do meu lado. Passa a gerente Sally e cumprimenta só Melina... Pensei: pronto, me fodi. Me contrataram às avessas da gerente e ela vai me odiar pelo resto da vida...
Nada. Sally era a doçura em pessoa. E um poço de paciência. Treinou eu e Melina com um procedimento que era muito difícil de fazer alguma coisa errada. Eu queria ter uma visão do todo, mas percebi que ela tinha dividido em passos cada ação para se montar um processo dentro do software específico e então resolvi que ia esperar para ver no que tudo ia dar.
Na verdade, eu não estava me esforçando muito para nada... Nada ali do que ela me contava me motivava.
Num resumo da ópera, o trabalho era juntar um monte de arquivos que eram mandados pela Locadora de carros Hertz, renomear tudo, ler todos, encontrar dados específicos em cada um e montar uma lógica de acordo com o que os advogados precisavam para dar andamento ao processos. Foi desse jeito que aprendi a comprar relatórios de departamentos policiais no país inteiro (cada Estado tem um modus operandi), li um monte de notícias sobre acidentes de trânsito com mortos e sem, vi centenas de fotos de carros batidos, tentei desvendar os códigos de relatos de telemarketings de investigação, fucei a vida das pessoas e seus endereços e propriedades. Na primeira semana eu já tinha um veredito: eu odiava o trabalho. Não tinha nem uma nesguinha do que eu fazia que me dava um pouquinho de motivação. Me peguei, em diversos momentos, pela primeira vez na vida, pasme, olhando no relógio desejando que o dia acabasse mais rápido. Era o dia todo procurando seguros, coberturas, propriedades, placas de carros, chassis, etc, dentro de um escritório sem janelas, com mais outros 30 colegas, todo mundo em silêncio e com meia hora de almoço não pago.
Recebi, logo nos primeiros dias, um email dizendo que se você fosse usar o celular deveria "bater o ponto" para tal porque não iriam pagar você para ficar no telefone, então havia uma atmosfera policialesca. nada mais foi dito mas se percebia no ar. Não se podia olhar para o lado. Como os computadores e as baias estavam sempre à mostra de todo mundo, todos vigiavam todos. E especificamente, a minha posição era de frente para uma parede e de costas para uma porta que ligava duas salas. Foram várias as vezes em que eu estava concentrada em uma leitura de relatório e me assustava com alguém atrás de mim.
Para piorar tudo, enquanto estávamos no treinamento na sala da gerente, todo mundo do escritório ouvia o que era falado. Era como se ninguém estivesse trabalhando e todos estavam ouvindo atrás da parede. Eu particularmente não conseguia ouvir as conversas direito e nem tinha interesse mas quase morri quando, um dia, eu fui esquentar meu almoço na pequena cozinha do escritório e iniciei uma conversa com a recepcionista que foi fazer o mesmo. Perguntei onde ela morava, acho. Alguém do outro lado do escritório respondeu antes dela ter tempo de começar a falar...
Outra percepção que tive dessa primeira semana em que fui apresentada para todos os colegas (e não lembrei de nome algum) era a quantidade de gente gorda. Com o tempo, fui notando que a vida dessas pessoas era acordar cedo (uns às 4 da manhã), dirigir até o trabalho, trabalhar em frente ao computador o dia todo, às vezes almoçar meio de ladinho, na mesma baia, assistindo alguma coisa no celular, daí voltar a trabalhar, sair dali, fazer janta e sentar com a família em frente a TV. Só uma menina que morava sozinha que era louca por exercício que parecia fazer algo um pouco fora dessa rotina. O resto das pessoas, com umas três exceções, era absolutamente imensa de gorda. Os homens também. Uma das mulheres que parecia estar lá já há uns dois anos, chegava as 6 da manhã e ia embora as 6 da tarde. Sentada o dia inteiro na frente do computador, no telefone, comendo em frente à tela.
Eu cheguei em casa nos primeiros dias vesga de tanto olhar as duas telas de computador para achar as informações. Deixei até de ver os meus emails de tão cansada de tela que eu ficava. Andar com acã se tornou mais do que terapêutico.
Aos poucos fui notando também uma leve síndrome pós-traumática de testemunha (guest pstd or post-traumatic stress disorder, dizem aqui), porque você não está no evento traumático mas absorve essa informação). Um dia eu estava buscando as causas de um acidente e descobri que a pessoa que alugou o carro estava dirigindo em uma pista, o carro da frente parou e ela resolveu desviar pegando a outra pista para continuar o caminho dela. Um caminhão à toda velocidade deu em cheio na traseira do carro da locadora que a moça estava dirigindo e arrastou ela até o próximo cruzamento. Naquele dia, marido foi me buscar no trabalho e num trânsito andando a 30 por hora fez a mesma manobra. Dei um pulo no banco do passageiro e o coração foi parar na boca, porque a imagem do caminhão vindo atrás apareceu de repente. Ele se assustou e eu mais ainda de saber que aquilo que eu vi durante o dia estava, na verdade, ficando dentro de mim. Pensei em médicos, enfermeiros, bombeiros. Em tantos profissionais que vêem desgraça o dia todo. Chorei. Me senti fraca. Eu estava lidando com a parte burocrática da coisa e já reagia assim... Nunca seria capaz de estar em um front de guerra sem antes morrer por dentro.
Aos poucos eu fui fazendo amizade com os colegas. O menino novinho que se achava importante, a senhora que tinha trabalhado a vida toda de telemarketing e adorava fuçar a vida das pessoas, outra que tinha dois filhos e estava feliz da vida atendendo o telefone e tendo uma vida "social". Eu pensava com os meus botões se esses colegas refletiam sobre o que estavam fazendo. Sobre o fim dessa atividade. Eu não via sentindo em ir atrás de indivíduos qual cão farejador e bancar o justiceiro por um erro que cometeram. Algumas das cartas que mandávamos de cobrança diziam: "por sua negligência nosso cliente teve perdas materiais de alto valor..." Não fazia sentido!!! Não fazia sentido para mim! Eu estava ficando profundamente infeliz, mas sabia que precisava daquele trabalho. Eu estava, finalmente, como boa parte do mundo, trabalhando só por dinheiro.
No fundo, meus colegas davam a sinais, alguns, é claro, de que sabiam o que faziam ali também. Eu no início os julgava, imaginando que não tinham discernimento moral para pensar em destinar um vida fazendo isso. Mas no final das contas, eles não tinham muitas opções. Como outros profissionais que viam coisas tristes o dia todo, eles criaram um véu de proteção para continuar a trabalhar e sustentar a família. Eu fui percebendo essas pistas em uma conversa aqui e outra ali.
Um dia, numa sessão de treinamento com a super paciente gerente, Melina perguntou a ela porque tínhamos que colocar no relatório a idade da pessoa que estávamos processando.
Sally explicou que se fosse muito jovem a gente sabia que não teria propriedades ou dinheiro, mas se fosse mais velho poderia ter propriedade e poderia ser processado. Melina curiosa, adiciona:
- Tá, mas se o acusado tiver 86 anos, vale a pena processar?
Sally foi rápida:
- Depende, depende de cada advogado aqui do escritório. Alguns são BONS, e não o fariam. Mas já o John, não perdoa, leva qualquer um para frente do juiz.
Outro dia, a menina que fazia ligações para cobrar e estabelecer um plano de pagamento para quem devia assumir os estragos do veículo, comenta na sala que dividíamos:
- Tenho dó desse menino. Ele alugou o carro e assinou o contrato porque o chefe pediu, alguém bateu nele e fugiu e, agora, ele é responsável por pagar pelo prejuízo. O chefe disse que não tem nada a ver com isso. Pelo contrato, eu só posso cobrar do menino...
Ali também aprendi que os contratos de locadoras obrigam o cliente a assumir qualquer dano se ninguém mais pagar, o seguro do culpado pelo acidente, o seguro do cliente (que as vezes inclui esse tipo de cobertura) ou mesmo o seguro que se adiciona ao preço da locação. São vários tipos de seguros e eles não cobrem tudo. Reflexos do tal mercado livre...
No dia em que fui avisar que tinha conseguido um outro trabalho que não era mais temporário, e que eu teria mais chance de comprar a casa que tanto queremos, a sócia do escritório confessou:
- uma pena. Quando acabasse seu contrato temporário iríamos te contratar direto como assistente. A advogada Leticia estava precisando de uma e você tinha o perfil ideal. Não tenho como te contratar antes que o período termine porque temos uma multa imensa com a agência de empregos se o fizermos.
Eu choquei. Ninguém notou que eu estava infinitamente triste. Eu consegui fingir alguma competência em um trabalho que eu desprezava. Deu um aperto no coração. Eu tinha uma oportunidade de ser promovida, coisa que muita gente festejaria sem piscar os olhos. E eu não podia dizer para a sócia/dona, tão amável, que era o trabalho que me incomodava. Não era o salário, a posição, o horário ou as pessoas.
Aliás, as pessoas eram a única coisa que me dava uma pequena alegria. Só as pessoas.
Eram todos humanos. Todos com discernimento sobre o que é justo e o que não é. E também sobre as regras do sistema em que vivemos. Delas, das pessoas, eu vou sentir saudades. Só delas.
Eu que vivo com metade da cabeça na ficção, na arte, no impossível, para poder continuar respirando não consegui ficar lá. Era muita realidade para mim.
Segui o conselho do roommate que me indicou para uma agência de empregos. Se chamava de staffing e 90% dos trabalhos disponíveis eram os tais temporários. Prometiam que muitos eram o temporários-para-contratar ou temp to hire como dizem aqui. Eu sabia que era marketing. Assim mesmo, quando o moço da agência me ligou para saber se eu queria que ele mandasse meu currículo para um escritório de advogados, eu disse que sim. Nunca se sabe, né?
Um dia depois, ele me liga dizendo que queriam me entrevistar para a vaga de "paralegal". O nome é chique, mas a posição é tipo "estagiário de Direito" ou "auxiliar de processos".
Fui meio ressabiada. Depois que a gente sai da área de conforto, daquela que você domina a língua, o conhecimento, as minúcias do processo, você acaba perdendo um pouco a noção do que sabe e do que não sabe. Na verdade, depois de 3 anos afastada do que eu sempre soube, do que fiz a minha vida inteira, eu já não sabia nem quem eu era. Não sabia até onde eu poderia dar conta, em qualquer trabalho, porque simplesmente eu não sabia do que se tratava cada uma das funções para as quais eu estava aplicando.
Uma que apliquei, por exemplo, era para serviço ao consumidor por email. Era algo que eu imaginava que tinha uma certa noção de conseguir desempenhar e, se tivesse qualquer problema com a língua, eu estava em frente ao computador e poderia pesquisar. Pois fui rejeitada sem entrevista. Sabe por quê? Porque o importante era a velocidade da digitação... E em inglês eu era o mínimo na velocidade. Fiquei muito puta. E pensei: fodam-se todos que preferem máquinas digitadoras do que seres pensantes. Eu pensava, oras. Digitar rápido estava em uma das últimas prioridades da minha vida.
E foi nesse humor que fui para a entrevista. Dois advogados super gente boa me explicaram que eu ia trabalhar com subrogation, que é quando as empresas de seguro de carro (principalmente) pagam seus clientes mas daí vão atrás para cobrar do culpado.
- Bah, elas nunca perdem... (escapou o comentário-pensamento crítico que não deveria ter escapado...)
O advogado concordou:
- Sim, nunca PERDEMOS.
Perguntaram da minha saga, contei; perguntaram o que uma PhD ia querer com uma posição tão inicial como de Paralegal, eu menti dizendo que estava querendo outros ares, porque cansei da academia (o que era uma verdade parcial). Enfim, perguntei sobre como seria o trabalho e eles falaram que eu iria tirar de letra. Duvidei. Eles disseram que a gerente tinha um jeito de treinar que era bem certinho e que não ia ter erro... Disseram ainda que o escritório está em franco crescimento, que estão sempre ampliando, que é a segunda leva de pessoas que estão contratando em dois meses porque não estavam dando conta. E eu poderia subir na carreira e me tornar assistente dos advogados!
Uau! Pensei comigo: quando foi na minha vida que eu almejei trabalhar com processos legais? E é claro que imaginei "dona vida" gargalhando às minhas custas. Saí do escritório sem nenhuma esperança, porque eu já tinha passado por outras entrevistas assim, em que tudo é rosas na hora de conversar e que depois não deram em nada.
Um dia depois, Jeremy, da agência me liga. Me queriam! Um frio na espinha desceu e subiu. E agora? Será que é isso que eu quero fazer? Será que ser temporário vai me permitir comprar uma casa? Será que vou saber fazer o que devia ser feito?
Como dizem num português bem chulo: o que era um peido para quem estava cagada? Fui, né?
Assinei os contratos, e lá fui eu com o meu almoço na marmita no primeiro dia de trabalho.
Esperei sentadinha na recepção e, de repente, Melina senta do meu lado. Passa a gerente Sally e cumprimenta só Melina... Pensei: pronto, me fodi. Me contrataram às avessas da gerente e ela vai me odiar pelo resto da vida...
Nada. Sally era a doçura em pessoa. E um poço de paciência. Treinou eu e Melina com um procedimento que era muito difícil de fazer alguma coisa errada. Eu queria ter uma visão do todo, mas percebi que ela tinha dividido em passos cada ação para se montar um processo dentro do software específico e então resolvi que ia esperar para ver no que tudo ia dar.
Na verdade, eu não estava me esforçando muito para nada... Nada ali do que ela me contava me motivava.
Num resumo da ópera, o trabalho era juntar um monte de arquivos que eram mandados pela Locadora de carros Hertz, renomear tudo, ler todos, encontrar dados específicos em cada um e montar uma lógica de acordo com o que os advogados precisavam para dar andamento ao processos. Foi desse jeito que aprendi a comprar relatórios de departamentos policiais no país inteiro (cada Estado tem um modus operandi), li um monte de notícias sobre acidentes de trânsito com mortos e sem, vi centenas de fotos de carros batidos, tentei desvendar os códigos de relatos de telemarketings de investigação, fucei a vida das pessoas e seus endereços e propriedades. Na primeira semana eu já tinha um veredito: eu odiava o trabalho. Não tinha nem uma nesguinha do que eu fazia que me dava um pouquinho de motivação. Me peguei, em diversos momentos, pela primeira vez na vida, pasme, olhando no relógio desejando que o dia acabasse mais rápido. Era o dia todo procurando seguros, coberturas, propriedades, placas de carros, chassis, etc, dentro de um escritório sem janelas, com mais outros 30 colegas, todo mundo em silêncio e com meia hora de almoço não pago.
Recebi, logo nos primeiros dias, um email dizendo que se você fosse usar o celular deveria "bater o ponto" para tal porque não iriam pagar você para ficar no telefone, então havia uma atmosfera policialesca. nada mais foi dito mas se percebia no ar. Não se podia olhar para o lado. Como os computadores e as baias estavam sempre à mostra de todo mundo, todos vigiavam todos. E especificamente, a minha posição era de frente para uma parede e de costas para uma porta que ligava duas salas. Foram várias as vezes em que eu estava concentrada em uma leitura de relatório e me assustava com alguém atrás de mim.
Para piorar tudo, enquanto estávamos no treinamento na sala da gerente, todo mundo do escritório ouvia o que era falado. Era como se ninguém estivesse trabalhando e todos estavam ouvindo atrás da parede. Eu particularmente não conseguia ouvir as conversas direito e nem tinha interesse mas quase morri quando, um dia, eu fui esquentar meu almoço na pequena cozinha do escritório e iniciei uma conversa com a recepcionista que foi fazer o mesmo. Perguntei onde ela morava, acho. Alguém do outro lado do escritório respondeu antes dela ter tempo de começar a falar...
Outra percepção que tive dessa primeira semana em que fui apresentada para todos os colegas (e não lembrei de nome algum) era a quantidade de gente gorda. Com o tempo, fui notando que a vida dessas pessoas era acordar cedo (uns às 4 da manhã), dirigir até o trabalho, trabalhar em frente ao computador o dia todo, às vezes almoçar meio de ladinho, na mesma baia, assistindo alguma coisa no celular, daí voltar a trabalhar, sair dali, fazer janta e sentar com a família em frente a TV. Só uma menina que morava sozinha que era louca por exercício que parecia fazer algo um pouco fora dessa rotina. O resto das pessoas, com umas três exceções, era absolutamente imensa de gorda. Os homens também. Uma das mulheres que parecia estar lá já há uns dois anos, chegava as 6 da manhã e ia embora as 6 da tarde. Sentada o dia inteiro na frente do computador, no telefone, comendo em frente à tela.
Eu cheguei em casa nos primeiros dias vesga de tanto olhar as duas telas de computador para achar as informações. Deixei até de ver os meus emails de tão cansada de tela que eu ficava. Andar com acã se tornou mais do que terapêutico.
Aos poucos fui notando também uma leve síndrome pós-traumática de testemunha (guest pstd or post-traumatic stress disorder, dizem aqui), porque você não está no evento traumático mas absorve essa informação). Um dia eu estava buscando as causas de um acidente e descobri que a pessoa que alugou o carro estava dirigindo em uma pista, o carro da frente parou e ela resolveu desviar pegando a outra pista para continuar o caminho dela. Um caminhão à toda velocidade deu em cheio na traseira do carro da locadora que a moça estava dirigindo e arrastou ela até o próximo cruzamento. Naquele dia, marido foi me buscar no trabalho e num trânsito andando a 30 por hora fez a mesma manobra. Dei um pulo no banco do passageiro e o coração foi parar na boca, porque a imagem do caminhão vindo atrás apareceu de repente. Ele se assustou e eu mais ainda de saber que aquilo que eu vi durante o dia estava, na verdade, ficando dentro de mim. Pensei em médicos, enfermeiros, bombeiros. Em tantos profissionais que vêem desgraça o dia todo. Chorei. Me senti fraca. Eu estava lidando com a parte burocrática da coisa e já reagia assim... Nunca seria capaz de estar em um front de guerra sem antes morrer por dentro.
Aos poucos eu fui fazendo amizade com os colegas. O menino novinho que se achava importante, a senhora que tinha trabalhado a vida toda de telemarketing e adorava fuçar a vida das pessoas, outra que tinha dois filhos e estava feliz da vida atendendo o telefone e tendo uma vida "social". Eu pensava com os meus botões se esses colegas refletiam sobre o que estavam fazendo. Sobre o fim dessa atividade. Eu não via sentindo em ir atrás de indivíduos qual cão farejador e bancar o justiceiro por um erro que cometeram. Algumas das cartas que mandávamos de cobrança diziam: "por sua negligência nosso cliente teve perdas materiais de alto valor..." Não fazia sentido!!! Não fazia sentido para mim! Eu estava ficando profundamente infeliz, mas sabia que precisava daquele trabalho. Eu estava, finalmente, como boa parte do mundo, trabalhando só por dinheiro.
No fundo, meus colegas davam a sinais, alguns, é claro, de que sabiam o que faziam ali também. Eu no início os julgava, imaginando que não tinham discernimento moral para pensar em destinar um vida fazendo isso. Mas no final das contas, eles não tinham muitas opções. Como outros profissionais que viam coisas tristes o dia todo, eles criaram um véu de proteção para continuar a trabalhar e sustentar a família. Eu fui percebendo essas pistas em uma conversa aqui e outra ali.
Um dia, numa sessão de treinamento com a super paciente gerente, Melina perguntou a ela porque tínhamos que colocar no relatório a idade da pessoa que estávamos processando.
Sally explicou que se fosse muito jovem a gente sabia que não teria propriedades ou dinheiro, mas se fosse mais velho poderia ter propriedade e poderia ser processado. Melina curiosa, adiciona:
- Tá, mas se o acusado tiver 86 anos, vale a pena processar?
Sally foi rápida:
- Depende, depende de cada advogado aqui do escritório. Alguns são BONS, e não o fariam. Mas já o John, não perdoa, leva qualquer um para frente do juiz.
Outro dia, a menina que fazia ligações para cobrar e estabelecer um plano de pagamento para quem devia assumir os estragos do veículo, comenta na sala que dividíamos:
- Tenho dó desse menino. Ele alugou o carro e assinou o contrato porque o chefe pediu, alguém bateu nele e fugiu e, agora, ele é responsável por pagar pelo prejuízo. O chefe disse que não tem nada a ver com isso. Pelo contrato, eu só posso cobrar do menino...
Ali também aprendi que os contratos de locadoras obrigam o cliente a assumir qualquer dano se ninguém mais pagar, o seguro do culpado pelo acidente, o seguro do cliente (que as vezes inclui esse tipo de cobertura) ou mesmo o seguro que se adiciona ao preço da locação. São vários tipos de seguros e eles não cobrem tudo. Reflexos do tal mercado livre...
No dia em que fui avisar que tinha conseguido um outro trabalho que não era mais temporário, e que eu teria mais chance de comprar a casa que tanto queremos, a sócia do escritório confessou:
- uma pena. Quando acabasse seu contrato temporário iríamos te contratar direto como assistente. A advogada Leticia estava precisando de uma e você tinha o perfil ideal. Não tenho como te contratar antes que o período termine porque temos uma multa imensa com a agência de empregos se o fizermos.
Eu choquei. Ninguém notou que eu estava infinitamente triste. Eu consegui fingir alguma competência em um trabalho que eu desprezava. Deu um aperto no coração. Eu tinha uma oportunidade de ser promovida, coisa que muita gente festejaria sem piscar os olhos. E eu não podia dizer para a sócia/dona, tão amável, que era o trabalho que me incomodava. Não era o salário, a posição, o horário ou as pessoas.
Aliás, as pessoas eram a única coisa que me dava uma pequena alegria. Só as pessoas.
Eram todos humanos. Todos com discernimento sobre o que é justo e o que não é. E também sobre as regras do sistema em que vivemos. Delas, das pessoas, eu vou sentir saudades. Só delas.
Eu que vivo com metade da cabeça na ficção, na arte, no impossível, para poder continuar respirando não consegui ficar lá. Era muita realidade para mim.
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