Essas diferenças culturais, mano...

Eu ia fazer um disclosure (aviso de possível cagada interpretativa à frente) aqui para começar a conversa já pondo que sim, esse texto vai ser enviesado e pode parecer tendencioso por um único e exclusivo motivo: é a minha experiência, com a minha bagagem e minha opinião embutida. Então, plis, NÃO GENERALIZA.

Pois bem, aqui nesse paraíso-fim-de-mundo que se chama Bar Harbor, eu trabalho num Bed and Breakfast - diga-se pousada estilo casa da vó - e numa loja de coisinhas, decorações e presentes que se entitula Fair Trade. Significa que todo o processo de produção e venda dos objetos passa por uma auditoria que garante salários decentes para os artesãos e suas famílias, estimulando comunidades longínquas que produzem coisas muito bacanas, bonitas e criativas.

Galera entra na loja e fica maravilhada com as possibilidades que existem, em como as pessoas são criativas, meu senhor, e outros comentários. Aqui tem cesta feita com fios de linha telefônica que vem da África, tem uns quadros de metal lindíssimos feitos por haitianos que reciclam aqueles tambores gigantes de óleo, tem cartões feitos com minúsculas dobras de papel multicolorido pelo pessoal do Vietnã.
Árvore da vida feita à martelada em tambores de óleo por haitianos.


É muito legal trabalhar aqui pelo conceito que envolve cada uma das peças (Há um ser humano do outro lado dos oceanos que gastou o tempo e habilidade para fazer!) e faço questão de comunicar isso. Então quando um americano desavisado vem de boca aberta perguntar:

- Como a pessoa foi criar essa peça? Que sacada mais inteligente! Impressionante como alguém pensou nisso!!!
Eu respondo:
- Necessidade. Quando você precisa comer no outro dia e não tem ideia de onde vai tirar dinheiro para isso você se torna muito criativo. Você se vira, inventa, faz algo para sobreviver.
E aí eu jogo um balde de realidade na pessoa que sempre teve tudo a disposição, nunca passou frio ou calor, muito menos fome. Uns fecham a cara, pensando. Outros se incomodam e mudam de assunto. Mas pensam também. Pensam, nem que seja por alguns segundos, no privilégio que têm de nunca ter tido que enfrentar as dificuldades que essas pessoas que fazem essas coisas lindas enfrentam.
Cestinhas feitas de fios de telefone.


E aí vem meu juízo de valor (sim, vou julgar, é minha opinião, que não tem nada de científico).
Uma sociedade que tem absolutamente tudo, que resolve todos os problemas num passe de mágica, de maneira barata ou super acessível acaba por não exercitar a criatividade. Ao mesmo tempo que muitos americanos inventam soluções fantásticas para resolver problemas em qualquer lugar do mundo, a grande maioria que nunca saiu do país ou nunca passou necessidades não têm muita ideia do que acontece fora e vive na bolha que o sistema midático oferece. No conforto do sofá e do ar condicionado de casa. A pessoa não tem a prática de solucionar problemas diários sem estar dentro de um padrão pré-determinado. A grande maioria vive um script muito bem planejado. Tem que ter ar condicionado, tem que ter aquecimento, tem que ter determinada roupa ou comida. Tem que ter carro. E tem que ter cartão de aniversário. Mas tem que ser de aniversário, não outro, porque é um aniversário. Assim, não há a mínima possibilidade de se ter um cartão em branco, por exemplo, para se escrever uma mensagem de aniversário. Tem que ser com tema de aniversário e mensagem de aniversário (lembra o script?)
Cartão de quilling.



Aconteceu agora a pouco.
Duas senhoras entram na loja. E eu com cólica, não nos meus melhores dias, já tendo visto essa história antes.

- Você sabe onde posso encontrar um cartão de aniversário?
Eu tenho, na loja, uma parede inteira de cartões lindíssimos de quilling (os mini papeis dobrados coloridos) que você pode transformar em quadro, em cartão de núpcias, de boa viagem, de super formatura, feliz casamento, e feliz aniversário!!! mas eu sabia que não adiantaria dar a ideia SUPER CRIATIVA de usarem aqueles cartões lindos como de aniversário.
qualquer um desses cartões poderia ser de aniversário. É só escrever Feliz Aniversário, né?


- Tenho alguns cartões aqui de aniversário (tinha uns 3 específicos) e outros que são lindíssimos...

-...mas é um aniversário!!!
(segurei meus palavrões em português)

- sim, eu tenho alguns de aniversário, com mensagem de aniversário e figuras que falam de aniversário.

Mostrei as 3 opções para elas. Escolheram a baleia fofa que diz: "Feliz Aniversário" com o esguicho de água da baleia.
:/
- Mas aqui tem baleia?, uma pergunta pra outra.
- Tem puffins, responde a outra.
- O que é um puffin?
Eu, sem paciência (que novidade) interfiro:
- Tem baleia, sim, tem barco que sai no mar para ver as baleias e os puffins você vai ver só em maio ou junho. Não é mais a época em que eles estão aqui.
- Mas o que é um puffin?
- um tipo de um pinguim com bico laranja (para fechar a conversa).
- Ah, tá.

 Uma olha para outra, de novo.
- Vamos levar a baleia?
-Vamos sim, daí a gente divide o custo.

Gente, 6 trumps. Seis dólares aqui é tipo seis reais, sabe? Não faça a conversão. Galera ganha em dólar aqui, sabe? E elas vão dividir os custos!
Uma pediu para eu trocar a nota de cinco por cinco de um dólar...

- São 6,36 com o imposto.
- Ah, você paga os 0,36 porque você comeu um camarão a mais no almoço.

What????

E foi assim mesmo. Uma pagou três dólares dos trocados que dei para ela da nota de cinco que ela pediu para trocar por cinco de um, e a outra pagou 3,36, porque comeu um camarão a mais no almoço, minha gente!

É disso que eu falo. A pessoa não consegue transformar um cartão genérico em cartão de aniversário porque nunca, nunca nem passou perto de alguém que tem um pacote de feijão para alimentar seis pessoas uma semana toda. Não tem ideia do que é colocar água no leite para fazer render. Não tem ideia do que é ir pedir um copo de farinha no vizinho para fazer um mingau pra várias barrigas roncando de fome.
A pessoa não teve um governo que congelou preço, daí outro que veio e tirou o dinheiro suado e economizado da poupança. Eles não têm ideia do que é ficar tenso/atento o tempo todo para ficar vivo e ter que usar a criatividade para sobreviver, a cada dia.

E daí quando é para desembolsar incríveis 6 trumps, contam os centavos. Porque, né? Tem que se apegar aos detalhes, porque talvez não há problema de real envergadura na vida. Detalhes. Há quem fique irritado quando se diz que são white people's problems. Ou first world problems. Porque né? Às vezes dá até vergonha de ter que ir mostrar o cartão de aniversário com mensagem de aniversário e desenho de aniversário porque é só assim que pode ser.

Bem que me disseram que o diabo mora nos detalhes.

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