As tempestades da vida



O silêncio lá fora é pesado. Boa parte das pessoas dorme e é como se tudo estivesse flutuando no ar com medo de tocar-se. Em suspenso. Talvez esteja começando a chover, bem de leve, de pouquinho. É o Dorian.

Informação não falta nessas horas. Americanos são muito bons em previsão do tempo. Parte porque há diferentes fenômenos da natureza que se mostram muito perigosos no país todo, desde tornados e furacões até tempestades de neve que trazem risco de morte para muita gente. Outra parte é porque (minha opinião) a cultura local leva a uma histeria em que se busca proteção e segurança a todo custo. Controle. O norte-americano precisa ter controle das variabilidades para poder se planejar. Ele controla os minutos, as distâncias, o trânsito, os diagnósticos. Surpresas ou tudo que sai do script é recebido sempre com reação desproporcional em comparação com os latino-americanos. 

Americanos são capazes de planejar uma viagem com dois anos de antecedência. Coisa impensável para os latinos. Mas essa é uma conversa para outro momento. O que importa saber é que numa sociedade do controle, previsão meteorológica é feita por minutos, têm radar que acompanha as nuvens e você acaba sabendo exatamente a que horas a parte pior da chuva vai acontecer.

A partir desse contexto, o silêncio lá fora fazia com que pudéssemos ouvir o coração das pessoas. Todas sabiam que, de alguma forma, seu dia seria afetado por algo que não tinham planejado. E parecia que as respirações estavam sendo cuidadosamente calculadas. Sabiam que o Dorian estava por chegar. 

os barquinhos de Northeast Harbor
Essa manhã de expectativa, num dos destinos de férias mais desejados do país, me fez lembrar do ano passado, quando precisei dirigir para Boston para votar. Eu tentava impedir uma “tempestade” socio-política sem precedentes – que já se mostrou horrível – no Brasil, mas ia enfrentar a chamada Nor’easter no meio do caminho. A Nor’easter é uma tempestade-ciclone que se forma na costa leste dos EUA. As pessoas avisavam a desavisada latina que era para ter todo o cuidado do mundo nas 5 horas de boleia.
Uma calma quase entediante
Na saída da ilha, depois de deixar a cã no hotel, o caminho se deu por Northeast Harbor, um dos vilarejos da ilha que concentra ricos discretos como a maioria dos seus moradores,  e visualizei os barquinhos todos pintando de diversas cores o mar azul. O sol fazia boa parte deles brilhar junto com a água do mar. Tudo calmo. Tudo no seu devido lugar. Tudo organizado e como deveria ser. Tudo entediantemente perfeito.
Na passagem, fiquei pensando em como seria quando o Nor’easter  passasse por ali. O que o vento e a chuva forte fariam com os barcos e como os seus proprietários ou cuidadores estariam se preparando para que os riscos de desastres fossem minimizados. Não se controla uma tempestade. Mas o ser humano já aprendeu a minimizar os riscos e perdas possíveis. Ainda assim, uma boa parcela do que é a tempestade ou de como ela vai afetar a vida das pessoas e das coisas é desconhecida.

Horas mais tarde eu tinha esquecido dos barquinhos. Estava dirigindo um carro relativamente leve no meio da Nor’easter. A calma se foi. Na highway de 4 pistas, eu precisava focar em segurar bem o volante e devia ficar atenta para as rajadas de vento que faziam o carro balançar na pista, invadindo a dos outros carros. Cuidado redobrado eu tinha que ter com a aquaplanagem também já que a chuva e o vento se concentrava em partes da tempestade.

Assim que, no começo de setembro o furacão Dorian se formou no Atlântico e está subindo a costa leste dos Estados Unidos, e pela primeira vez em que estou morando no Maine, algo dessa magnitude iria chegar por essas bandas. Classificado como de categoria 5 numa gradação que vai de 1 a 5, Dorian foi nomeado como o segundo mais violento furacão da história. O fenômeno se formou no mar e foi caminhando em direção ao norte. É claro que os efeitos esperados no Maine nem se comparam aos que aconteceram nas Bahamas onde aconteceu a “direct fall”, que é quando um fenômeno desses, que está no ar, encosta no chão. Vendo as entrevistas na TV sobre as preparações dos estados da Flórida e arredores as pessoas repetiam freneticamente que o único medo era um direct fall. Eles são experientes em furacões. Já aqui em cima, no nordeste, raramente um fenômeno desses tem energia para chegar. Mas Dorian, depois de espalhar destruição nas Bahamas, acabou lambendo a costa leste americana e teve fôlego para subir. Segundo as informações do sistema metereológico, vamos acabar sentindo alguns efeitos desse furacão aqui na Mount Desert Island.

Mesmo não sendo especialistas em furacão aqui nessa lonjura, algumas decisões estão sendo tomadas para garantir a segurança dos que visitam a ilha. Acessos para os pontos de visualização do mar foram fechados como Sand Beach e o Thunder Hole. A maré alta pode ter aumento de mais de 10 pés, o que faz com que a água invada partes rochosas onde normalmente os turistas tiram fotos fantásticas. O que quero dizer que com um aumento de mais de 3 metros na água, uma onda que alcance alguém ali fará a pessoa desaparecer muito rápido, dada a violência marítima naquela área.
É isso. Hoje uma ilha pacata e bucólica, em que a editoria de polícia do jornal é praticamente uma piada pra quem vem de grandes centros, vai experimentar um rompante da natureza.

E a pergunta que fico me fazendo é como as pessoas vão reagir. Ontem, dia anterior a chegada dos efeitos do Dorian, muita gente relaxava na praça principal, os cães brincavam, pessoas saboreavam um sorvete e um livro, enfim, levavam uma vida de férias normal. Quantas delas estariam pensando na tempestade? Quantas estariam refletindo sobre o quanto aqueles momentos seriam caros no dia que se segue?
Não foi difícil comparar com o ano em que estamos vivendo, em termos de organização política tanto nacional (Brasil e EUA) quanto mundial. O furacão de extrema-direita está literalmente destruindo direitos, garantias, dignidades e seguranças. Programas que estabeleciam um desenvolvimento decente para o Brasil estão sendo dizimados. Lutas de anos, como da Planned Parenthood nos EUA estão sendo sufocadas. E a pergunta que fica é: quem são os que assistem como se não vão ser atingidos? Quem são os que sabiam desses riscos e trataram de aproveitar para se manter a salvo antes que ele viesse? Quem são os que não tiveram como se preparar e estão sofrendo as piores consequências dessa violência? Quem está a salvo?

Como numa tempestade desse nível, os mais pobres são os primeiros afetados. E numa situação assim análoga, eu fico pensando o que seria o barco de salvação, ou de consolo para esses? 

Nas Bahamas, os desalojados estão sendo recebidos nos grandes navios de cruzeiros que fazem parada na ilha. Talvez essa seja a única maneira que algumas daquelas pessoas vão poder “desfrutar” dos espaços de navios luxuosos assim. Alguns são capazes de transportarem torno de 6 mil pessoas. O mesmo número de pessoas que vivem na pequena cidade em que moro. Uma cidade que se move. E que move uma economia de bilhões, comumente usando as Bahamas como parada para esses visitantes.
Não deixa de ser irônica essa passagem de um furacão. Destrói os menores e escancara as relações de exploração de quem desce de um cruzeiro para desfrutar das “belezas” de uma vivência pobre, que só tem a natureza ao seu favor. Mas e quando até a natureza se volta contra eles? Quem será por eles?
Quando até o Estado, que deveria garantir direitos básicos se volta no inimigo, quem será a barca de salvação desse povo sofrido?
Como em muitas situações que vimos na história, só  solidariedade e a resistência, principalmente, para se reconstruir são as tábuas salvadoras.

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