As rugas que eu conheci em você



Pintura do pai com cara enferruscada



Eu juro que dentro de todo o processo de procrastinação que eu desenvolvo para então mergulhar num projeto de pesquisa, eu estava me comportando. Coloquei músicas adequadas e estava trabalhando na edição de um texto que ia defender com unhas e dentes no próximo congresso.
Claro que a cada congresso que vou meu senso crítico borbulha e se volta pra mim e me pergunta: que diacho você está fazendo aqui ainda? As lógicas da academia estão cada vez mais perdendo o sentido para mim. São artigos, livros, palestras para os pares. Muito pouco se muda na nossa realidade e às vezes, petrificados e chocados, a gente vê o mundo andar para trás com governos de extrema direita, ódio ao diferente crescendo e menos esperança de um mundo em que todo mundo possa ter uma vida decente.

Mas, olha, o paper era sobre algumas ideias de como podemos mudar o ambiente da universidade e ouvir mais o diferente. É ainda um retrato da minha teimosia em querer mudar de pouco as coisas que estão ao meu alcance. Não, não perdi a esperança ainda...

E, no outro lado da sala o marido estava selecionando algumas pinturas para mostras locais. Interrompe meu processo de escrita:

-Você se importa se eu levar a pintura que fiz do seu pai para exibir no Reel Pizza?
- Claro que não, respondi num processo automático que surpreendeu até a mim.
Mas foi inevitável. Minha cabeça foi para a pintura feita há quase um ano e à lembrança das minhas críticas efusivas a ela:

- Meu pai parece muito bravo aqui. Ele não é assim.
- Mas são as rugas que ele tinha na foto tirada.
- Eu sei, mas aqui ele parece bravo. E ele não é.

Fiquei pensando nas rugas. Você tinha aquelas da testa que eu nem percebia direito. Também não lembro se você tinha pés de galinha, imagino que alguns. Eu lembro da textura do seu rosto, como se hoje eu pudesse passar a mão nele de novo. Lembro das rugas no pescoço, algumas. Mas as que mais me são presentes são aquelas formadas quando você ria. Várias ao redor da boca. E esse era o problema da pintura. Você não estava sorrindo nela. Alí residia todo o problema da pintura. Eu nunca consegui perceber as outras rugas que você tinha porque eu só prestava atenção nas rugas de sorriso. Era como se quando você ria, toda a luz ia para a sua boca e eu nem percebia as rugas que simbolizavam toda a caminhada que você percorreu. Essa pintura diz muito sobre um pai que tentava esconder as dificuldades com o sorriso, ou com a resposta básica para a pergunta automática, se estava tudo bem:

-  Cada dia melhor.

É isso, pai. A pintura mostra as rugas que você sempre teve e eu nunca percebi porque estava prestando atenção nas rugas do seu sorriso. E agora vendo a foto que deu origem à pintura eu entendi o motivo de tantas rugas e dessa cara enferruscada: você estava passando protetor solar. Coisa que você odiava com todo o seu ser e chegava a prender a respiração para passar no rosto. E a gente tinha que gritar sempre que você iria virar um camarão se não o fizesse.

Espero que você esteja descobrindo muitas coisas novas, reencontrando muita galera do passado e sendo feliz.

E também queria te dizer que uma pintura com todas as suas rugas reais colocando protetor solar vai estar exposta em um dos cinemas de Bar Harbor. Vê se aparece para prestigiar, tá?

Cara engruvinhada por causa do protetor solar...


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