Mais uma folha da minha árvore saiu voando ao vento








Mudar de hemisfério causa uma boa confusão nos jeitos que a gente se relaciona com a natureza. E para piorar, alguns povos utilizam muito as referências das estações para determinar o período em que algo aconteceu.
Dessa vez, mesmo com os brotos aparecendo ao redor da minha casa e nas ruas, o verde voltando a ser visto nos gramados das redondezas, voltou a ser outono em mim. O mesmo outono que está fazendo as folhas caírem no hemisfério do qual eu vim, o mesmo outono em que nasci e você nasceu. Está muito estranho lidar com a sua não presença. Eu não chamo de ausência porque você já era não presente para mim, desde que saí do país. Mas eu te sabia lá, naquele quarto, com todas aquelas coisas amontoadas nas duas escrivaninhas que competiam por espaço com a cama e o armário cheio.

Na última vez que estive lá, você já não estava. Eu dormi um dia na sua cama e resolvi que no outro dia ia limpar seu quarto para quando você voltasse. Fui limpando com cuidado, levantando as coisas, empilhando sem mexer muito, me surpreendendo com a sua falta de lógica na junção dos objetos. Você tinha uma cartinha que a irmã fez quando ela era muito pequena na gaveta do lado da sua cama, misturada com livrinhos de orações, um relógio todo decorado com uma cena bucólica do campo que não funcionava, seus remédios cotidianos, clipes... Para mim estava tudo muito bagunçado, mas eu limpei tudo com um medo horrível do quanto você iria ficar bravo por eu ter mexido nas suas coisas. Eu deixei tudo muito igual ao que estava, porque sabia que você ia ficar muito bravo. Você nunca voltou para aquele quarto para ver que tirei pó, passei pano em tudo e empilhei boa parte dos seus papeis.

Eu também não te vi passando por outro lado. Mas me contaram. Não te vi no caixão e agradeço muito pela sua delicadeza em esperar eu ir embora só para eu não ver teu rosto perdendo a cor ou ter que ser educada e polida no seu velório com uma multidão que foi se despedir de você. Eu sei, eu sei, que todo mundo estava com boas intenções e muito amor, que foram porque de algum jeito te amavam ou aos seus. Não os julgo, não. Mas você me conhece. E para mim, parece que você fez de caso pensado. Deixou eu ir falar com você tantas vezes, dividir a notícia que você seria biso (tenho bem clara na minha cabeça a cara que você faria se pudesse responder ou reagir!), ouvir música italiana junto, rezar o terço e contar os meus novos projetos. E aí quando tive que tomar uma decisão sobre vir embora ou ficar esperando algo acontecer, pediram para eu ouvir meu coração. Eu, no fundo, não queria acreditar, muito menos aceitar que eu sabia que você estava indo. Tantas vezes não ouvi minha intuição exatamente porque não queria que aquilo acontecesse. Mas aconteceu. Eu cheguei em casa e você fez a passagem no dia seguinte. Aí entendi que você não me queria lá. Porque eu não queria estar lá. E eu pude trabalhar toda a minha tristeza de ver você partir como folha ao vento, sozinha, junto da natureza, do mar, e das árvores.

Nesse último final de semana aqueles casais que sempre vem ajudar na abertura e fechamento da estação no Inn (você os conheceu), conseguiram limpar o jardim das folhas que tinham caído no último outono, em novembro passado. O chão estava forrado ainda porque não deu tempo, como quando você veio aqui aquela vez, de juntar tudo antes da primeira neve. As folhas caíram, assim, sem fazer alarde e estavam no chão, ali, esperando para virar adubo. Igual você pai. Foi, sem fazer alarde. Foi acompanhar o vento e sabe que será adubo. Entendi que você é folha que voou hoje, quando recebi um aviso daquele site que faz as árvores genealógicas. Entendi que era hora de registrar lá que você agora é folha caída dessa árvore ligada a essa terra. Espero que você tenha certeza que antes mesmo de cair, já era adubo para um monte de gente. Com bom adubo a gente cresce. Eu, por exemplo, vou ter que amadurecer a tua ausência. Entender que nunca mais vou te ver naquele quarto que limpei. Lidar com essa coisa de que uma folha que cai, na verdade cai para se transformar em outra coisa. Ela cumpriu o ciclo e agora retorna a sua origem. Lição cara, que aos poucos vou ter que ir aprendendo. Até que essa agonia de não te saber mais lá, no meio desses papeis, seja trocada pela paz de te saber espalhado por onde eu for, no ar, no chão, nas outras plantas, na primavera que insiste em voltar.


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