De tudo um pouco - Women´s March


A arte do cartão postal que percorre o mundo agora
foi feita por Jennifer Judd-Mcgee, moradora da Ilha de Mount Desert 


Quem me conhece sabe que tenho uma história de afeto com alguns tipos de ativismo. Não sou das radicais que devota a vida a uma temática ou luta, mas participo e me envolvo sempre em demandas que estão ao meu redor. É aquela história de não passar pelo mundo a passeio e entender que todo mundo pode fazer diferença.

Essa caminhada me levou a estudar os movimentos sociais dentro da academia ligando com a paixão que alimento sempre que é a comunicação.

Pessoal da universidade onde eu trabalhava dizia que eu era a que estudava os “pobres”. Enquanto outros colegas estavam desenvolvendo pesquisas sobre comunicação entre robôs, sobre técnicas publicitárias e campanhas geniais, sobre as tecnologias da informação aliadas à comunicação, eu sempre estava mais interessada em como aquela pequena comunidade estava imprimindo panfletos para informar a todos sobre uma epidemia, sobre direitos, enfim, como estavam usando a comunicação para se desenvolver.

Se em alguns círculos eu era o peixe fora da água, em um grupo de pesquisa, especificamente, eu sempre me senti em casa. Todas as vezes que fui a encontros do Comuni, na Metodista de São Paulo, eu via que não estava sozinha e isso me motivava cada vez mais. No fundo, fazemos parte da galera que quer ver um mundo em que todos tenham as mesmas oportunidades. Simples assim.

Nas pesquisas que desenvolvi encontrei muita gente na América Latina e Europa nessa trilha também. A gente vai fuçando e acaba encontrando nossos similares. Conheci gente que saiu da Europa – porque tudo já estava muito discutido - para investigar as iniciativas na América Latina que borbulha em criativas formas de se comunicar e se desenvolver com recursos muito escassos. O cenário é riquíssimo em soluções e formas de conviver comunitariamente.

Mas aí mudei para os Estados Unidos. Morar no símbolo da opressão econômica de outros povos não é algo fácil de se digerir para alguém nessa caminhada. Eu poderia passar pela cooptação, isto é esquecer quem sou, quem fui e fingir que está tudo bem nesse novo mundo tão abundante de recursos. Mas há um detalhe chamado senso crítico que mesmo que a gente queira desligar, não desliga (se você souber como fazer, me avisa. É bom para descansar de vez em quando).

Então, o que me restou para não começar a autoflagelação foi entender onde estou inserida e como são as lógicas aqui. E aí a gente percebe que nada é por acaso, que a tal da sincronia existe.
A única faculdade da ilha tem como degree (formação) a Ecologia Humana. É a terceira instituição no país todo em melhor alimentação para os estudantes, oferecendo alimentação balanceada, produzida ali, orgânica e com variações para veganos, vegetarianos, alérgicos entre outros. Ao redor do campus estão pendurados muitos avisos sobre suporte afetivo, psicológico e comunitário para qualquer problema. É uma comunidade afetiva, a princípio.

A ilha onde moro já foi chamada de Éden e ao mesmo tempo que é lugar de veraneio para riquíssimas famílias (Rockfellers eram proprietários de quase tudo), possui uma comunidade de pescadores de lagosta super organizada e ferrenha em defender seus interesses e mais um bom punhado de ecosuperchatos que querem a preservação do parque Acadia (que rodeia tudo isso). Há mais dezenas de outras organizações, inclusive uma que quer que a ilha seja autosuficiente em energia. Bem, isso já diz muito sobre porque estou quase à vontade aqui.  

O centro de reciclagem é uma lindeza e deveria ser exemplo de ideia simples para qualquer cidade.
Mas é importante ressaltar que todas essas iniciativas estão inseridas dentro de uma cultura da abundância e do descarte, em que aquilo que está um pouco ruim não se conserta, é jogado fora. Comida em geral é desperdiçada de maneira assustadora e nem todo mundo entende a reciclagem como algo pro mundo, mas simplesmente como uma maneira de conseguir uns “pennies”. Isso é país, variando para mais ou menos, dependendo do estado.

Claro que não sou ninguém na fila do pão para poder opinar. E sei que a minha visão é fragmentada e contaminada pela minha experiência de vida.

Pois bem, dentro desse escopo, ontem tive uma noção de que não tem escapatória. A gente pode ter diferença cultural em muitos lugares do mundo, mas as lógicas de convivência acabam tendo a mesma raiz, o mesmo modus operandi.

No dia seguinte em que o novo presidente (aquele que é melhor nem citar o nome) assumiu, milhões de mulheres, homens e crianças se dirigiram à Washington para comunicar aos líderes do país que não estavam satisfeitos com a visão de como as coisas estavam se encaminhando em relação a garantia de direitos conquistados (para resumir).

Daqui da ilha, uma mulher, vendo toda a movimentação, pensou em se juntar ao pessoal que se organizava. Ontem, em frente de mais de 100 pessoas, dentro de uma sala do YWCA, ela contou que imaginava que seria ela e mais umas duas amigas viajando no próprio carro, reforçando aquela massa de povo e suas intenções. Quando se deu conta, ela tinha dois ônibus organizados, cheios, reunindo 110 pessoas só daqui desse titico de mundo. Do estado do Maine, que tem uma população de 1 milhão de residentes, foram em torno de 4 mil pessoas.

Ontem, essa pequena comunidade se juntou para se organizar. Entre os discursos, líderes de diversas organizações da região falaram em como ser estratégico agora. Em como trabalhar em turnos, em como tomar cuidado da saúde e das relações perto da gente. Porque todo mundo tem que estar alerta por 4 anos, sem descanso. “O governo aposta no nosso cansaço”. Falou-se em agir em turnos. Falaram em unificar forças no momento, e em como é importante, mesmo com as diferenças, manter uma atitude pró-ativa. Uma das expressões que mais simbolizaram o momento e a mística do grupo foi dita pela Rachel: “a democracia efetiva não é organizada, controlada, calma. Ela é bagunçada, barulhenta, cansa, nem todo mundo concorda, mas todo mundo quer trabalhar junto, tem a vontade de trabalhar para todos. Mantenhamos nossa organização essencialmente democrática.”
Milja Brecher Demuro, que reuniu os dois ônibus, contando sua experiência.

A senhorinha que sentava ao meu lado sorriu. Ela trabalha em uma rádio comunitária fazendo um programa sobre mulheres nos domingos à noite. Um pouco antes ela tirou o recibo do mercado do bolso e disse animadamente: “Bem, não ando com cartões de visita. Mas esse é o tipo de cartão que a gente, dos movimentos, usa. Esse é o meu contato”.

Um pouco depois um professor da faculdade entregou para todo mundo um texto mostrando como cada um pode ajudar financeiramente cada organização que já está fazendo um trabalho pelo bem de todos deixando de comprar loucamente em datas festivas (Valentine´s day é na próxima semana) e doando para esse tipo de serviço.
Depois, uma outra senhora contou para todo mundo como agora ela se viu envolvida em um movimento chamado Indivisível. Existem mais de 4 mil grupos no país todo e o que eles fazem é pegar as demandas locais e fazer pressão nos representantes políticos.

Havia comida, preparada por várias pessoas da comunidade. Era um potluck (o que chamamos de festa americana) em que cada um traz um pouco. Teve gente que trouxe bastante, teve gente que trouxe um pouco, teve quem não trouxe. Ninguém ficou preocupado. Ninguém deixou de comer. Sobrou.

Ontem percebi que é possível que a Women´s March se torne o 15M americano. O guarda-chuva que vai unificar vários grupos, várias demandas. E mostrar que o povo quando está organizado, resiste.

E eu, claro, finalmente me senti em casa. 

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