A vó que eu não pude ter e o livro de um passado distante-atual


Acho que fico me repetindo sempre que digo que a vida é uma senhora muito engraçada. Cínica, às vezes. Eu passei esse ano vislumbrando mudanças de certa forma radicais na minha vida. E quando a gente pensa em mudança sempre vem um punhado de expectativa junto. Mesmo já tendo ouvido o conselho do Buda que diz  que nossas expectativas são a causa de toda frustração, levante o braço quem consegue ficar sem elas. Não tem jeito. Sem certezas pela frente, a gente as constrói no imaginário.

E foi assim que fui construindo um mundo idílico para a minha mudança. Eu iria conviver com duas avós que não eram minhas, mas que herdei com todo o gosto do mundo, já que não tenho mais meus avós nessa terra. E, de já ter conversado com cada uma dessas avós, eu fiquei construindo os cenários que seriam possíveis. Para uma delas eu iria ler. Ler histórias que ela gostasse. Ambas ficariam felizes, eu por treinar meu inglês, ela por de novo ter algum tipo de outro mundo para sair navegando já que os óculos não são mais suficientes. Ela iria ouvir, eu iria ler pra ela. Simples.

Da outra avó eu iria ouvir estórias. Iria aprender sobre jardinagem, sobre culinária, sobre as coisas como eram e como são, e falaríamos de livros. Ela me contaria como era ser professora em um passado já distante, em uma cidade pequena, em outro país que não era o meu. Enfim, essa vó não esperou as coisas se concretizarem. Ela se foi. E mais do que qualquer outra pessoa da família, eu me senti roubada. Eu não tive o meu tempo com ela. Não consegui aprender ou ouvir as suas estórias. Não deu tempo. E chorei. Chorei por mim, que fiquei construindo mundos que não controlo. Que mais uma vez tive que baixar a cabeça pra o inevitável e engolir o amargo sabor de não ter controle das coisas. Como é difícil, meu Deus!

Bem, ainda tenho a outra vó. Esquecida, mas ainda posso ler para ela. Ela disse que quer saber dos livros da Ágatha Christie. Eu falei que quando conseguir ir para lá, eu iria ler para ela. Mas já não tenho tanta certeza. Nenhuma certeza. Por que é bem possível que a vida venha de novo e me mostre mais uma vez que não controlo porcaria nenhuma.

De qualquer forma, nem que seja pelas estórias dos outros, ou das que cada um lembrou no funeral, elas já me tocaram de alguma forma. De uma forma que um livro especialmente me ofertado e finalmente lido, conta:

"Faz muitos anos que meu avô morreu, mas se você levantasse a tampa do meu crânio, por Deus, você encontraria nas circunvoluções de meu cérebro, as marcas profundas de seus polegares. Ele me tocou. Como eu já disse, ele era escultor. 'Odeio um romano chamado Status Quo!', disse-me ele. 'Encha seus olhos de admiração', dizia ele, 'Viva como se fosse cair morto daqui a dez segundos. Veja o mundo. Ele é mais fantástico do que qualquer sonho que se possa produzir nas fábricas. Não peça garantias, não peça segurança. Jamais houve semelhante animal. E se houvesse, seria parente do grande bicho-preguiça pendurado de cabeça para baixo numa árvore, o dia inteiro, todos os dias, a vida inteira dormindo. Para o inferno com isso!', dizia ele. 'Balance a árvore e derrube o bicho-preguiça de bunda no chão.' "

O livro? Fahrenheit 451. Vale a pena ler. Talvez para alguma avó.






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