O sofá se foi

Tinha um sofá. Até ontem, por 23 anos eu tinha um sofá. Minto. Um jogo de sofá. Agora eu tenho somente um sofá de dois lugares. O de 3 lugares se foi.

Hoje em dia é raro alguém manter algo por 23 anos. E, não, não gosto de ficar me apegando às coisas. Coisas são coisas. Só se coiseam.
A questão com esse sofá de 3 lugares é que lembro, como se fosse hoje, quando fomos comprar. E essa coisa me traz um momento específico. Ou vários. Mas eu lembro muito bem da compra.

Eu tinha acabado de engravidar por acidente: 17 anos e “toda a certeza” do mundo sobre como seria a minha vida. Impressionante como a vida vai fazendo a gente largar as certezas pelo caminho... Uma a uma. Lembro que eu tinha certeza que ia casar, formar uma família e ser feliz para sempre. Simples assim. Mas, na época, a gente não tinha um “puto”. Não que agora eu tenha muitos putos mas, na época, montar uma casa, entre dois adolescentes sem trabalho definido era algo bem complicado. E como a gente ia casar, a família se juntou para dar as coisas necessárias para termos um lar. E lembro que a minha mãe se dispôs a dar o sofá. E fomos juntas ver qual “jogo de sofá” seria o mais adequado. Fomos comprá-lo no primeiro arranha-céu de Curitiba, que naquele tempo, era uma loja de departamentos muito bonita. O prédio era bonito. O prédio é bonito. Hoje eu dou aula na universidade que ocupa esse prédio. Irônica, essa vida, não?
Pois bem, prática como sempre, já que eu iria ter um bebê, fui logo falando:
- Melhor ser de corino, mãe. Se derramar comida, suco, leite e tals, é só passar um pano e tá limpo.

Para mim, sofá era para sentar. Nada de ficar dormindo de tarde em frente da tevê. Era para sentar, para as pessoas se juntarem e conversarem. Sentar. Pronto.
- Mas que cor?
- Ah, um cinza. Cinza combina com tudo.

E assim foi. O jogo de sofá de três e dois lugares veio para casa. E eu mudei esse jogo de sofá de lugar milhares de vezes quando meu filho era pequeno. Ele os escalava. O pai dele tocava música para ele ali. Ele dormiu ali várias vezes enquanto eu estava cozinhando. Viu centenas de desenhos animados dali. Nos mudamos. O sofá foi junto. O divórcio veio. O sofá ficou. E foi rasgando. Muito uso, sabe?
Cobri com um pano. É o que a gente faz quando quer esconder os buracos. E comecei a guardar dinheiro. Chegou a hora da decisão: trocar de sofá. Todo mundo faz isso. O tecido se rasga, a gente troca tudo. E eu imaginei aquele sofá boiando em um rio de Curitiba, como tantos outros. Sempre me perguntei o que faz uma pessoa jogar um sofá no rio? O Tietê deve ter várias salas montadas só de sofás jogados. E me neguei a trocar o sofá. Não por apego, mas para ele não ficar boiando. Afinal o problema era só no tecido. Dava para sentar. E sofá foi feito para sentar. Numa repaginação da casa (colocamos tintas em algumas paredes) consegui comprar um tecido para o sofá. Azul marinho para contrapor com a parede laranja. Ia ficar legal. Chamei o moço e ele reformou o sofá. E o jogo de sofá ficou ali mais uns 15 anos, acho eu. O de três lugares perto da janela e o de dois lugares no meio da sala. Perdi as contas de quanta gente sentou ali. Perdi as contas de quantos bebês foram trocados ali. Perdi as contas de quantos filmes foram vistos dali. Perdi as contas de quantas conversas animadas e reuniões familiares aconteceram ali.

A ideia de comprar sofás mais confortáveis, daqueles que abraçam, puxam uma coisa aqui, outra ali, sempre foi discutida. Nunca acatada por mim. Sofá é para sentar.

Ontem o sofá de 3 lugares se foi. O tecido nem estava rasgado. Minto, estava um pouco. Na verdade, o que aconteceu com ele é o que acontece com tudo para o que não prestamos atenção. Alguém se interessa. No caso do sofá foi uma comunidade bem organizada de cupins. Vários, muitos mesmo.

Há um mês o sofá de 3 lugares ficou de pé, no meio da sala, na reforma feita na casa. Os móveis foram apertados para cá e para lá e ele ficou de pé no meio da sala enquanto a reforma acontecia. Precisávamos de espaço e, de pé, ele ocupava menos. Durante um mês ele mostrou seu verso. E estava carcomido. Praticamente destruído. Ainda aspirei, limpei, joguei veneno. Em vão. Eu queria jogá-lo fora, porque não tinha vencido a guerra contra os cupins. Os outros integrantes da casa diziam:
- mas dá para sentar. É só por baixo.

E eu pensei: sofá é para sentar. Se dá para sentar, ele pode ficar por aqui mais um pouco. E voltou para perto da janela quando a reforma acabou. Farelinhos no chão se viam de vez em quando. E eram aspirados. Afinal, o que não é visto, não é sentido. E ainda dava para sentar.

Até que domingo passado, num calor horrível, eu sentei nele para conversar ao telefone. E vi os cupins, no seu natural movimento reprodutivo, voando para fora do sofá. Eu estava vendo. Eles tinha tomado conta do sofá. O sofá de 3 lugares não era mais meu, era dos cupins. Peguei o aspirador. Aspirei tudo que tinha asas. E olhando com mais cuidado para a vida – coisa que a gente nunca faz – vi que vários cupins voavam, vinham de fora da janela, tentando entrar em casa e se encontrar com os cupins moradores do sofá. Eles tinham uma comunidade!!! Aqueles micro-bichinhos decidiram que o meu sofá, que era para sentar, podia ser de morar também. Impossível! Eu sou ser humano e seres humanos definem para que cada coisa serve!! E sofá é para sentar, não para morar.

Assim, ontem, com pesar, o sofá de 3 lugares, casa de milhares de cupins, foi colocado do lado da lixeira.
Olhando da janela, eu ficava pensando se colocaria um aviso para os desavisados sobre a comunidade que ali existia. Não queria que uma família, morando principalmente em uma casa de madeira (casas são para morar), fosse ter um sofá que é para sentar com uma comunidade de cupim morando nele.

E o acaso deu jeito. O caminhão do lixo passou. E o que era um sofá para sentar virou um monte de pedaços de madeira e tecido. Foram preciso os 4 rapazes do caminhão para colocá-lo ali dentro. E ele foi moído, aqui na frente de casa mesmo. Melhor assim. Era para sentar, não para morar. Ninguém merece morar em um sofá. E nenhum sofá merece ficar boiando em um rio. Ao final foi melhor assim.
O de dois lugares ficou. E continua sendo usado para sentar.

Quando  o sofá era cinza, há 23 anos...
Gente morando em sofá.
Sofá no rio.
Outro sofá no rio.
O de dois lugares. Que ficou sozinho.

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