Podem dizer que estou amarga, que logo hoje que eu deveria estar feliz com o dia das crianças, venho aqui fazer críticas. Pode até ser. Mas a verdade é que depois que um cego passa a ver, ele não nutre mais as imaginações que nutria quando não via, quando só imaginava. Ele vê. E quando vê precisa se posicionar frente a visão. Há os que escolhem fechar os olhos mesmo depois de ter visto e há os cegos que preferem continuar cegos porque a visão pode ser dolorosa.
Enfim.
Sempre comemorei em casa de maneira comedida esse dia das crianças. O bombardeio das empresas que fazem brinquedos ou mesmo guloseimas é tão grande que não é possível passar incólume a esse tipo de apelo. Mesmo assim, fruto da educação que tive com meus pais, sempre fui à origem dos significados das datas para ver ao certo o que é que estávamos comemorando.
Bem, aqui, uma das origens, na verdade, coincide com o feriado da Nossa Senhora Aparecida, um dos nomes que a igreja católica dá a Maria, mãe de Jesus. Essa Nossa Senhora aparece em um rio – Paraíba do Sul -, nos arredores do Guaratinguetá –SP, em meio a uma pescaria. Diz-se que depois que o corpo da imagem e, mais tarde, a cabeça apareceu nas redes, vasta pescaria se deu. O detalhe é que a imagem era de uma mulher negra. E a pescaria estava sendo feita para o novo governador de Minas Gerais e São Paulo, Conde de Assumar que estava conhecendo as terras que iria governar. As histórias apontam o ano de 1717, o que me leva a lembrar que teríamos ainda mais de 100 anos para pensar em abolição da escravatura. E essa abolição só se deu com pressões externas principalmente dos ingleses que queriam mais mercado consumidor para seus produtos. Hipocrisia. Passa-se a venerar uma santa negra, mas continuamos a escravizar seus irmãos.
Esse dia é também comemorado por colonizadores espanhóis e portugueses como o Dia das Américas porque também foi o dia em que Colombo aportou nesse continente (coincidência, né?) e quando começou o massacre dos povos indígenas que aqui viviam. Depois de ter passado um tempo na Espanha e entendido essa comemoração, me nego a ser feliz hoje.
Mas se formos mais em frente nas pesquisas superficiais – deixando de ser cegos, é claro, o que é uma opção – veremos que cada país tem um jeito de acertar uma data para o Dia das Crianças. A UNICEF tinha instituído o dia 20 de novembro (o que aqui acabaria coincidindo com outra data, a da Consciência Negra, recém estabelecida), mas cada país resolveu por si e a seu critério qual data queria.
A nossa, pasmem senhores, se estabeleceu a partir de um lei promulgada em 1924. O motivo de ser o dia 12 de outubro ainda não está claro. Mas a data realmente ganhou força a partir de uma forte campanha de marketing em meados dos anos 1960 de duas grandes empresas fornecedoras de produtos infantis: a Johnson & Johnson (nossa, uma multinacional, que novidade...) e a Estrela, fábrica de brinquedos. A Johnson & Johnson criou a “Semana do Bebê Robusto” e outros empresários logo viram a oportunidade de aumentar as vendas ali. Claro.
Resumindo: consumo. Compre, compre. Consuma. Não estou aqui tentando ser purista, pensando que o consumo é todo o mal da nossa sociedade. Sempre vamos consumir. Mas é importante tirar as fantasias que revestem esses objetivos finais, não é?
Afinal a abolição da escravatura não se deu porque uma Nossa Senhora Negra foi retirada de um rio (e eu fico pensando em quem a colocou lá...), nem porque era hora de todo mundo ter direito a tão falada liberdade. Era para consumir mais. Produtos Ingleses.
O Dia das Crianças também não nasceu da ideia de que precisamos cuidar mais das nossas crianças, evitar o trabalho infantil, investir em maior controle dos programas televisivos, passar mais tempo de qualidade com nossos filhos, ensinar com cuidado valores que vão carregar para o resto da vida, ou ainda trabalhar em prol da igualdade de oportunidades para atacar a mortalidade infantil. Ele nasceu do intuito de duas empresas – e depois outras – de venderem mais.
Por essa razão, eu vou comemorar o dia de hoje como o dia da Resistência Indígena. Porque eles consumiam, sim. Consumiam mandioca, milho, leite, água do rio que era limpo, antes de nós, colonizadores (ou o tal do Colombo), chegarmos aqui.
Eu quero esse tipo de consumo para mim. Aquele que supre as minhas necessidades sem destruir tudo ao redor.
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