Sobre a que foi, a que ficou, violetas, pontes e laços









Laços na ponte
Vidas enlaçadas ou lançadas?

O rio Corrib vindo para a ponte Wolfe Tone

Parece que a mesa da cozinha é o meu lugar de catarse. As preciosas horas calmas de café da manhã dão o tempo necessário para digerir, refletir e sedimentar os fazeres, os que foram e os porvires. 
Depois de um mês e meio fora de casa, voltar é esquisito. A alma sempre engrandece, incha e nunca volta ao normal com tudo que foi vivido, aí tenho que encontrar lugares para esses novos pedaços de mim no meu cenário, lugar que ficou aqui me esperando. 

As plantas. As plantas desabrocharam, floriram, cresceram. O resto parece que ficou tudo no mesmo lugar. 
Mas eu não sou mais aquela que se foi. Outra chegou e vai precisar reconhecer esses espaços e se estabelecer.

Sei que não é fácil conviver comigo. Por isso quando gritei para o marido sobre a violeta, ele tinha certeza que tinha feito algo errado. Dá para sentir no ar a tensão quando volto para casa, porque ele tenta e se esforça para deixar as coisas do jeito que eu gostaria que ficassem, mas, bem, isso é impossível. Primeiro porque a relação que nutro com o meu lugar de estar é uma mudança eterna. E ela acontece dentro de mim, todos os dias, em todos os momentos em que decido mudar algo. Como o pote de colheres de pau que estava muito escondido e com facilidade de formar mofo que mudei e pus na frente da janela. 
Ele só perguntou: - porque as colheres estão aqui? 
- Porque o escuro e falta de ventilação do canto do balcão iam fazê-las mofar. 
- Ah entendi.
Ele não sabe que lavei todas, deixei de molho no vinagre e pus para secar no sol lá fora em um dia que estava limpando a casa, para então mudá-las de lugar. 
São processos internos que acontecem em qualquer lugar, com qualquer pessoa, eu imagino. E é muito cansativo, pelo menos para mim, explicar esses detalhes todos. Por isso eu entendo o medo dele quando eu reajo a algo. É muito difícil saber o que se passa no outro, que está sempre em transformação.

E gritei essa manhã quando vi a violeta. Foi de encantamento. E inveja. E ciúme. 
- Como assim você não foi capaz de me dizer que a violeta floriu?? 
Ele me olhou com uma cara de misto de desespero e espanto. Consegui ler os pensamentos na cabeça:
"O que foi que eu perdi agora? O que fiz errado? Como assim eu precisava dizer que a violeta estava desabrochando? Qual delas é a violeta? Tem flores em quatro vasos aqui..."

Ele não tinha feito nada de errado. Ele não sabia que eu, quando conversava todas as manhãs com as plantas, procurava os botões. Todos os dias. E ela decidiu brotar quando eu não estava. Deu três lindos presentes para ele que não tem ideia do que é esperar por mais de um ano por botões de uma flor pequenininha. Um estava murcho já. Por isso a inveja. Por isso o ciúme. E antes disso tudo a explosão de surpresa. 
Eu sei que vou curtir as nuances de rosa das flores que ficaram enquanto elas estiverem por aqui. E isso me fez feliz de estar de volta. Os sentimentos ruins rapidamente deram lugar para o encantamento de saber ter o privilégio de admirá-las.

E é assim toda vez que viajo e volto. Há uma explosão entre a eu que deixou as coisas desse jeito e a que chegou. Não são as mesmas. Elas vão discutir, se questionar e decidir se deixam as coisas assim ou mudam de lugar. Até porque a que chegou precisa de espaço, muito espaço para a bagagem - não a física, a de informação, emoções e conexões - que ela trouxe, tudo novinho em folha (graças a Deusa não se paga excesso de bagagem nesse caso). E vai ter muito sentimento e descobertas e experiências que precisarão encontrar lugares nesse "infinito particular" (oi, Marisa Monte!).

Uma das reflexões dessa manhã foi sobre a ponte Wolfe Tone que é a última ligação cruzando o rio Corrib em Galway antes dele chegar na baía. A primeira vez que passei por ali estava prestando atenção ao que meu amigo Andrew, que nasceu lá, explicava  sobre a história do lugar e da comunidade pesqueira do Claddagh. Nem vi direito o parapeito. Foi outro dia, numa caminhada buscando meus entrevistados, que notei as várias fitas amarradas na grade do parapeito do rio. Lembrei de diversas pontes, desde Montevideo a Paris com aqueles mil cadeados pendurados. Algumas delas, fiquei sabendo, tiveram que ser "limpas" desses cadeados porque eles colocavam muito peso fixo em estruturas históricas e arriscavam derrubá-las. É só seguir meus amigos Luis e Leandro do "Paris do seu Jeito" para saber mais. Mas eu também achava um horror algumas pessoas entenderem que relacionamento tinha que ser como um cadeado, você fica preso com a outra pessoa, para sempre, na beira de uma ponte, prestes a cair na água. A cena na minha cabeça nunca fez muito sentido. Que amor é esse, minha gente?
Então quando vi laços de fita na estrutura de metal tive pontas de esperança, achando que estavam substituindo o cadeado, que prende, por laços que envolvem. E aí até a visualização do relacionamento fica diferente. São duas pessoas envoltas em si, olhando a água da vida passar por elas da segurança de uma ponte. Seguro, mas não sufocante, castrador, ameaçador. Quando se quiser ir em frente sozinho, só desatar o laço e fica tudo bem. 
Lembro de naquele dia ter ido para minha casa em Galway mais feliz com toda a reflexão que eu estava fazendo sobre cadeados e laços. 

Num outro dia, no final de um tour, descobri que o Corrib é o rio mais rápido da Irlanda, o que adiciona uma noção de segurança para aqueles laços que seguram uma pessoa na outra. As vezes a vida pode trazer correntezas assustadoras e ter alguém a quem se enlaçar para não ser levado é fundamental. Pode ser a tradução de amor, não é? Os laços na ponte continuaram sendo símbolos bonitos na minha reflexão.

Mas num dos últimos dias na cidades, quando eu e Andrew passávamos pela ponte novamente, ele se vira e me diz:
- Dizem que esses laços aqui são em homenagem a quem se jogou dessa ponte. 

Oi?

Parei.

- Como assim?
- Sim, gente que se joga daqui. Suicídio.
 
- Mas como alguém consegue se matar de uma distância tão pequena, numa água tão rasa? Não pode!!!, disse eu, andando de um lado para o outro na ponte, atrapalhando os outros pedestres, olhando para baixo e para o outro lado do rio que deságua na baía, indignadíssima. 

- A correnteza...

Foi rio abaixo toda a minha reflexão sobre amor romântico, cadeados e laços de fita. 
Então aquilo tudo não era gente feliz, de mãos dadas. Era gente numa dor tão dilacerante que, como alívio ou solução, só via a violenta correnteza do rio, ali embaixo.

Andrew, notando a minha revolta com aquela informação nova, ainda completou:
- E uma menina que fazia parte do time de remo da National University of Ireland in Galway (NUIG) disse uma vez que se acredita que o rio clama, todos os anos, por, pelo menos, oito vidas.

Minha boca secou. 

Pronto, toda a história de amor e encantamento entre duas almas, a noção do amor romântico que liga e dá segurança, a conexão contemplativa com a natureza e sua potência, se transformou em luto por todos aqueles que um dia pensaram em tirar a própria vida, pelos que, sufocados pelo desespero, preferiram se afogar na água e, também, por todos que por uma brincadeira, erro de cálculo ou por terem bebido demais caíram ali para nunca mais voltar.

Triste. Desolador. Mas não menos interessante. É história humana, faz parte das paredes, dos muros, das ruas, do parapeito daquela ponte. Saimos dali no momento em que um menino brincando, carregando uma menina e rindo, ameaça jogar ela do outro lado do parapeito. Eu olhei para meu amigo e ele assentiu:
- Muitas vezes é assim que acontece.
Continuamos a caminhar em silêncio.

As duas Niveas, a que se foi e a que deixou as coisas do jeito que estavam nessa casa vão precisar encontrar um lugar para essa história, assim como para todas as milhares de outras reflexões trazidas dessa viagem. Vai levar tempo. E a casa vai ficar mais aconchegante e muito mais interessante. 
Não é, dona violeta?


Dona violeta em toda a sua beleza.



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