Festina Lente




São 7 da manhã e estou aqui na cozinha de chão de cimento com pedrinhas de uma casa construída em 1800 e lá vai bolinha que carrega a história de uma família inteira no decorrer de gerações.  A casa está incrustrada numa comuna francesa a uma hora de Lyon. Se eu algum dia imaginei que esse lugar existia e eu estaria aqui? Nem em sonho. A avó da minha nora nasceu nessa casa. Não tenho condições de explicar qual parte da casa foi construída em cada era, já que como em toda caminhada dos humanos plebeus nessa terra as coisas foram feitas aos poucos. Primeiro uma estrutura básica para dar guarida contra as intempéries, depois com trabalho intenso, muitas vezes na roça e com o gado, as coisas foram se ajeitando e pode-se fazer um puxado aqui, um quarto a mais ali e acomodar a prole.

A casa é feita de pedra e suas principais paredes têm quase um metro de largura. Na parte de fora, impera aquela estética de encaixe de pedras que deixa tudo mais nostálgico lembrando de um tempo difícil e sem recursos. Dois grandes andares fazem a estrutura com quartos em diferentes níveis entre esses andares. Uma sala embaixo tem lareira enorme para lembrar da dificuldade de se esquentar nos invernos. A cozinha, engraçada, no segundo andar, possui uma pia escondida em um nicho, escondida por uma porta - como se fosse vergonhoso lavar os pratos... Parte dos armários são antigos, embutidos, e parte traz a modernidade e a praticidade da Ikea dos nossos tempos. Essas eras se convivem e está tudo bem.

Faz alguns dias que cheguei aqui e a correria atrás da neta com quase dois anos não me impediu de notar que este parece ser um lugar parado no tempo e no espaço mas que ao mesmo tempo, lentamente vai acolhendo o novo. Beeeeeeeem lentamente resiste a pressa dos grandes centros.

No barracão dividido em dois salões que nada mais é a continuação do primeiro andar da casa, os bebedouros feitos de metal com uma lingueta para deixar passar a água encanada para uso do gado estão intactos. Os suportes de feno e milho também estão lá, como se esperassem as vacas, bois e cavalos chegarem a qualquer momento. A pilha de lenha guardada no anexo barracão, tudo parte da mesma estrutura de pedra, data da época dos avós da atual senhoria. A reverência à história chega até esses pedaços de árvores que foram poupados do fogo durante os anos. Descansam como se fossem eternos. Eu me impressiono de lembrar de uma época em que os animais eram parte do mesmo edifício, mesmo sendo usados como comida depois. Hoje, encontramos pedaços amorfos deles no supermercado...

O terreno é imenso e dá comida para rebanhos dos vizinhos. Uma outra casa, com as mais modernas estruturas de climatização, aquecimento, conforto e praticidade foi construída para que os donos tivessem seu quinhão de paz enquanto turistas, veranistas e retirantes alugam a casa histórica. Todo mundo quer experimentar essa paz rural pelo menos em momentos de férias e sortudo mesmo é quem pode se chegar a qualquer momento, sem fazer reserva, para usufruir desse silêncio. 

Os vizinhos padecem das mesmas dicotomias. Enquanto uns se esforçam por manter o ar medieval - romântico das pedras, janelas de madeira e flores subindo pelas paredes externas - outros constroem casas pequenas, mais funcionais e quadradas para se manterem nesse solo com as benesses tecnológicas que hoje existem. Como a internet que uso agora.

Com aproximadamente 300 habitantes, o povoado de Chissey-lês-Macôn é um das centenas de pequenos vilarejos que sofre dos mesmos desafios que qualquer outro desse tamanho, incrustado em montanhas: seus habitantes estão envelhecendo e os novos saindo para tentar levar uma vida menos difícil nos amontoamentos das cidades. Parece que o maior desafio do ser humano hoje está em conquistar essa vida pacata que alguns vilarejos oferecem com espaço e qualidade de ar, de comida, de vida, agregando as fontes de renda que emanam dos grandes negócios, empresas e conglomerados. 

A resposta da equação, depois de um ano pandêmico, em que muitos entenderam que é possível diminuir tráfego e poluição trabalhando de casa, é providenciar a internet de qualidade. Por essa razão uma das mais importantes missões da matriarca da família Robin é trazer internet por fibra ótica para essas bandas. O plano é atrair gente nova, casais com filhos pequenos e outros cérebros que foram cooptados pelas grandes corporações.

O trabalho não deixa de ser hercúleo em paragens como essa. Limpar e manter é uma constante. A grama cresce, o bicho entra no sótão roubando as ameixas da árvore e fazendo ninho, o tomate plantado deu demais ou não é suficiente, enfim. Viver nas penúrias de uma vida somente rural não é mais possível quando se tem no horizonte tantos confortos ao alcance da mão, como as frutas já cortadas no pote de plástico transparente na gôndola do, novamente, supermercado.

Sobreviventes são os avós da nora. 72 anos de vida em uma mesma casa, mesmo lugar. Na visita, algumas palavras aqui ou ali do francês falado pela avó me soaram muito familiares e eu quase poderia conversar com ela. Depois descobri que a pronúncia dela é considerada caipira pelos erres não tão arrastados. Até na língua a vida desses lugarejos cheira a origem e os sons são mais fáceis de serem percebidos. 

Chateau de Cormatin


Dicotômica ao extremo essa vida que tentamos levar, não é? Mas nada de novo. Tanto que a mensagem aplicada na entrada do labirinto do Chateau de Cormatin do século XVII, vizinho desses povoados aqui, reza uma fala bem propícia dita, pelo que se sabe, pelo imperador Augusto: Festina Lente. Ou apressa-te devagar ou, ainda, Make haste slowly. 

Pelo que se explica, um imperativo em segunda pessoa (Festina) e um advérbio (Lente).

A expressão é uma tradução no latim do original do grego. Dizem ser um oxímoro, ou trocado em miúdos, expressão que apresenta vocábulos com significados inversos.

Na verdade, em vez de causar confusão, a expressão tem uma lição muito profunda que acaba expondo essa dicotomia em que todos vivemos. Num interpretação rasa ela aponta que o trabalho bem feito é melhor que o apressado. Indo mais a fundo, a lição que tiro, e que finalmente consigo assimilar nessa etapa da vida, é de que com constância, foco e estando 100% presente em cada projeto, as coisas acabam sendo mais produtivas e duram mais do que quando a gente se atabalhoa para sair fazendo tudo descabeladamente.

Sempre tive uma certa ansiedade que me fazia estar em diversos lugares ao mesmo tempo e nunca inteira. Correndo sempre. E o último trabalho, no correio americano, me ensinou que arrancar-se pela raiz no que fazemos pode custar bem caro e nem sempre trazer frutos. É por essas e por outras que ando percebendo que alguma coisa mudou aqui dentro. Tenho muitos projetos por fazer, muitas coisas a escrever e realizar e quando vim visitar a neta tinha em mente fazer um diário, como sempre fiz em viagens. Não deu. Viver intensamente cada minuto com ela ficou em primeiro lugar. Vou ter tempo para escrever mais tarde, quando não estiver com ela. 

Assim como esses vilarejos aqui no interior da França resistem seguindo o curso da natureza que é quem dita os ritmos, aprendo que tudo tem um tempo certo para acontecer e realizar e que ficar sentindo culpa ou tristeza pelo não feito enquanto se está vivendo pela metade o presente não tem nada de produtivo nem de feliz.

Parece que o Festina Lente finalmente chegou para mim.

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