A força de um sistema que mina as relações


Nos últimos dias estou ligando “lé” com “crê” com mais frequência e só mesmo escrevendo para poder descarregar esses questionamentos. Coisas que profundamente influenciam nosso dia a dia.

Esses dias um amigo casado com um filhinho pequeno estava contando que a esposa reclamava da ausência dele “em casa”. Ele é do tipo workaholic mas largou um dos empregos para poder se dedicar mais à família. Ele não entendia porque a mulher estava tão insatisfeita, afinal ele pensava em fazer coisas juntos, ele ficava com o bebê quando ela precisava fazer as unhas (se cuidar) e dar uma volta no shopping. Perguntei se o tempo que passavam com o bebê era equivalente e ele, muito rápido, respondeu: “não, definitivamente. Ela fica muito mais tempo. Mas não porque não quero dividir as coisas, mas sim por que é natural dela ficar mais com ele. Ela é uma excelente mãe”. Naturalmente perdido, ele ainda me dizia que as vezes em que ele ficou com o filho para ela poder descansar, ela ligava preocupada para saber como estavam. Ele simplesmente não entendia. A mulher precisava descansar, queria descansar, mas não conseguia.

Essa situação me pareceu tão familiar, tão familiar que acabou me chocando. Sou do tipo que não conseguiu se encaixar nos padrões sociais de casar e ser feliz para sempre. Mesmo assim casei duas vezes. Meu pai costuma me chamar de ET, porque além de ser independente “demais” resolvi não ter carro. Meu terapeuta perdeu a paciência comigo. Mas uma coisa todo mundo (sociedade) tem certeza: sou uma boa mãe. Aliás foi essa frase que meu primeiro marido escreveu na sessão de terapia que começamos para tentar recuperar um casamento que nunca sei se conseguimos construir. Eu era uma boa mãe.

Hoje, meu filho crescido, tem com a namorada os mesmos problemas que eu tive com o pai dele e que o meu amigo tem com a esposa. Os mesmos. Mais de 20 depois nada mudou. Ela (e esse ela pode ser eu, a namorada do meu filho, a esposa do meu amigo) sempre ligada demasiadamente às coisas da casa, da cria. Querendo construir um lar. Pouco deixando espaço para hobbies ou prazeres. Eles tentando encaixar na vida que construíram a “obrigação” de ser namorado, marido, pai. De pensar coletivo. Elas muito cansadas, mas sem coragem de largar a missão de “cuidar” do coletivo. Eles sem entender como podem ajudar ou o que fazer.

E depois de muito me revoltar com essa enorme diferença entre os papéis de cada um, vendo que esse padrão se repetia, e vendo os questionamentos do meu filho, fiz o que toda mulher faz: fui ver qual era a minha culpa. E vi que desde pequeno meu filho foi levado por mim – éramos só nós dois – a fazer as coisas da casa. Limpar banheiro, lavar louça, passar a própria roupa, ajudar a organizar, levantar cedo para ir à feira no sábado. Enfim, ele teve aulas de como se participa na organização e ainda assim, tem uma imensa dificuldade em entender as prioridades da namorada. E a gente, uma imensa dificuldade em entender como eles podem ser tão “relapsos”. Como, para eles, não é natural pensar obviamente no bem-estar de todo mundo, nos consertos que a casa precisa, nos programas de família, antes de se divertir ou gerir seus próprios projetos?

Enfim, sem dormir direito comecei a pensar em algo que explicasse isso e vi o quanto o “brincar” quando se é criança determina a nossa vida. A menina “brinca” de casinha, de criar bebês. Brincar remete ao prazer quando se é pequeno. Quando crescemos, isso se torna natural, faz parte de nós, está intrínseco, quase como um hobbie. Mas é trabalho. Os meninos brincam de serem super heróis, de lutas, de carros... Para eles é natural fazer disputas no futebol, mexer eternamente no carro, ficar se gabando com os amigos em relação a um melhor salário. Esse é o mundo em que somos treinados. A crueldade, que vai dar um baita enrosco lá na frente, começa quando todos são pequenos. E aí, a mulher se sente extremamente frustrada porque o projeto de construir família, de ficarem juntos, de dividirem projetos nesse âmbito não tem o mesmo entusiasmo dos parceiros. E eles, quando não subestimam tudo isso completamente relegando esse papel às mulheres, ficam sem entender porque não gostam tanto quanto elas desse mundo. Eles vêem e sentem como uma pesada obrigação pensar no coletivo, mesmo que morram de vontade de participar, de ajudar, de satisfazer suas companheiras. Neles não foi treinada a habilidade de pensar no outro, de cuidar, de entender que as atividades da casa e o cuidado com os filhos remetem-se aos dois. E a partir daí a gente vê que isso está estabelecido por séculos e não conseguimos mudar.

Faz parte, como cancro, do inconsciente coletivo que é alimentado todos os dias pela publicidade-lugar-comum, pelo enfoque das matérias jornalísticas e por expressões do tipo:

- “hum, sério, que ela não foi capaz de trocar a fralda e está se divertindo com as amigas?”
- “Mas a sua patroa te deixa ficar no bar? Não fica importunando?”
- “Hum, vai virar mariquinha carregando essa bonequinha para lá e para cá...”
- “Bar XYZ. O bar que junta: diversão, amigos e ‘amor, vou ficar trabalhando até mais tarde’.” (juro para vocês que essa é a propaganda de um bar em um outdoor na Saldanha Marinho).
- "Isso não é coisa de homem..."
- "Isso não é coisa de mulher..."

Enfim, eu penso sempre em saídas. Mulheres, façamos terapia para desgrudar essa “missão” inculcada em nós por toda uma vida e aprendamos a ter prazer com outras coisas delegando a responsabilidade a eles. Homens, se joguem, tentem e façam terapia para se desgrudar do padrão que dita que vocês precisam competir, salvar o mundo e etc. Você só precisam se ligar que vivem em comunidade.

Pais e mães, peloamordedeus, deixem seus filhos e filhas brincarem de qualquer coisa e vamos parar com essa história de princesa, de guerreiro, de azul e rosa, de casinha e carrinho. Ofereçam tudo. Assim talvez seja possível que tenhamos mulheres menos culpadas com o prazer e homens mais ligados no coletivo.


Imagem do site: http://pinguinhodetinta.com.br/?p=880

Comentários